
Visitar Campos no inverno, sempre me trouxe ótimas recordações e todos os anos, quando tenho a oportunidade vou lá, com a família passar uns dias.
Nosso hotel se situava numa montanha, tendo ao fundo um vale, cortado por um rio de águas límpidas, e que com suas margens de pedras ladeava um bosque de pinheiros, entremeados por jardins de samambaias e bromélias. Poder estar desfrutando daquela paisagem era um privilégio.
A noite havia sido bastante fria e o termômetro tinha registrado 0ºC durante a madrugada. Acordo com o bip do meu IPhone, sinalizando que alguém havia me enviado alguma mensagem no WhatsApp. Olho de canto de olho para o celular, em cima do criado mudo, fecho os olhos novamente, pensando em voltar a dormir, mas me lembro que naquele sábado começaria a exposição de carros antigos e pulo da cama.
Levanto, tomo um banho quente, engulo um expresso, gorro na cabeça, roupa de frio e lá vou eu dar um passeio pelo centrinho de Capivari, uma das três vilas que compõem a linda cidade de Campos do Jordão, na serra da Mantiqueira, para ver a exposição.
Os carros antigos, era um hobby no qual gostaria muito de me aprofundar com mais intensidade, mas que estes últimos governos e suas políticas econômicas infelizes me deixaram impossibilitado de correr muito mais atrás deste sonho.
Bem, só me restou, e me contento com isso, a ir a essas exposições para ver e admirar os carrões antigos, muito bem restaurados, imaginando as histórias que estão por trás de cada um deles: quem foram seus donos, por onde andaram, quais as cidades pelas quais passaram, que fatos da história foram testemunhas e assim por diante.
Comecei a ver a exposição percorrendo as ruas da velha Capivari e olhando cada um daqueles carros. Fui passando, como um relógio segue o tempo, por cada um daqueles modelos de carros que vi e convivi na infância e adolescência.
Alguns dos modelos minha família tinha tido, outros tinham sido de propriedade de um amigo do meu pai ou vizinho, outros haviam pertencido a pais ou avôs de algum dos meus amigos de infância.
Estavam todos lá, desde o velho e valente Fusca, passando pela Kombi, DKV Vemaguet, Sinca Chambord, a dupla Douphine/Gordini, Willys Interlagos, Aero Willys, Puma, Brasília, Variant e tantos outros, que aquela oportunidade me proporcionava, naquela manhã fria e ensolarada de inverno em Campos.
Foi então, quando adentrei a praça Benedito Calixto, bem no coração de Capivari, que avistei ao longe, ele, o inigualável Ford 1949 preto, brilhando com seu para-choques, a sua grade frontal e seus frisos cromados refletindo a luz do sol, como que destacando ainda mais o seu imponente capô.
Chegando bem perto observei que um funcionário do expositor, um senhor de idade, com os cabelos brancos desgrenhados, muito parecido, com o “Doc Brown”, (aquele louco personagem do filme “De Volta para o Futuro”) que não parava de lustrar o Ford com sua flanela amarela.
Me dirigi ao senhor e educadamente lhe pedi para ver o carro, se possível nos seus mínimos detalhes, e a permissão para sentar ao volante, o lugar sagrado do motorista.
Ao me sentar e pegar no volante foi como se o verdadeiro Doc Brown, aparecesse ao meu lado, acionasse o motor e eu imediatamente me transformasse no seu companheiro Marty, voando no tempo, para aquelas aventuras. E assim foi!
Minha mente voou no tempo…….eu me imaginei o próprio Marty. Lá estava eu de volta à época da minha adolescência……relembrando muitas das aventuras com o Ford 49.
Esse transe me levou para minha cidade natal no ano de 1970, época de carnaval, e ano do centenário da cidade.
Estacionei o velho Ford em frente a Patota, bar que frequentávamos.
A Patota tinha no seu início as “brincadeiras” dos finais de semana (baladinhas
da época) e que mais tarde foi substituída por um bar tradicional com suas
mesas de bilhar, mesas que se diga, nos consumiram boas e deliciosas horas na
adolescência.
A minha mente começou então a relembrar mais e mais coisas daquele passado maravilhoso e das aventuras com o velho Ford….
Nessa época o meu grande amigo de infância Zezão, que era grande não só no tamanho, mas principalmente no coração, é quem tinha um carro desses, ou melhor dizendo, quem tinha mesmo era o seu pai. Um lendário Ford 49 e preto!
Digo preto, com exclamação, porque na época adorávamos os filmes de gângster, que assistíamos no velho Cine Paratodos e todo carro de gângster que se prezasse tinha que ser preto!
Quando sentávamos ao volante do “Fordão”, apelido carinhoso que dávamos ao carro, nos sentíamos o próprio Don Corleone de “O Poderoso Chefão”, rodando com sua gangue por Chicago! E isso para nós, naquela idade, naquele tempo era muito, mas muito divertido!
A família dele tocava um pequeno comércio de secos e molhados, como se denominava na época as casas comerciais que vendiam gêneros alimentícios e o velho Ford, já meio baleado pela má conservação, diga-se, era praticamente utilizado só para as entregas de mercadorias para os clientes, nas colônias das grandes fazendas de café, que prosperavam à época, na nossa região.
Aquele pequeno armazém, situado numa esquina de uma rua pacata, que dava no seu final, para a porta do Tênis Clube, era para todos nós um mistério de como sobrevivia, porque não aparentava ter grande movimento, no seu dia a dia, pelo menos na nossa jovem e inexperiente visão.
Esse detalhe levou, alguns anos mais tarde, um dos nossos amigos e pequeno craque de bola, quando se tornou economista, a ter a ideia de escrever uma tese de economia, baseado no pequeno armazém. Ele sempre dizia:
– “Cara isso dá uma fantástica tese de doutorado. Como será, que aquele pequeno armazém quase sem movimento e com tão poucos produtos, pode se manter aberto? Se eu descobrir isso, vou ganhar o prêmio Nobel de Economia na certa, completava ele, viajando e brincando…”
Pena duas vezes, uma porque não vimos ele concluir esse devaneio com sua tese econômica e outra também porque não tivemos mais contato. Só soubemos que pôs fora toda uma carreira e alguns casamentos, em função da depressão crônica que adquiriu durante o decorrer da vida….
Mas e o nosso Fordão?
Digo “nosso” porque se tornou, com o passar do tempo, muito mais “nosso” que do
seu verdadeiro dono, o pai desse nosso amigão…
Bem….ele continuou sua saga conosco a passos largos, ou melhor a pneus
carecas, pois sua conservação era bastante precária.
Para nós, essa má conservação, não era importante, bastava simplesmente, que ao
girarmos a chave ou ao empurrá-lo ladeira abaixo, o motor pegasse e a gente
pudesse entrar em um bando de seis ou sete amigos e dar os nossos “rolês”.
Aliás tínhamos um macete infalível. Quando sua bomba de gasolina teimava em esquentar e querer estragar nossas aventuras, pegávamos uma lata de “Parquetina”, furada no meio (cera para assoalho muito comum na época) que ficava guardada num canto do porta malas e colocávamos a lata cheia de estopa molhada, envolvendo a bomba. Isso ajudava no resfriamento e pronto, lá estávamos nós de novo, com o teimoso Fordão na ativa, mesmo que rateando, pelas subidas e descidas da cidade.
Para poder “pegá-lo emprestado” do seu dono ficávamos normalmente esperando que o armazém terminasse suas entregas e encostassem o velho Ford na rua lateral, perto do rio Paraiso. Essa era a hora de correr pegar a chave e vupt! dar as nossas voltinhas.
Não é preciso dizer que tudo era feito de modo que ninguém nos visse ou autorizasse, e cá entre nós, era a parte mais gostosa da aventura e o que nos deixava com a adrenalina a mil.
O nosso grande amigo Zezão, também se foi muito cedo, e o curioso é que nunca soubemos e nem nunca perguntamos como ele se entendia com seu pai, depois das nossas escapadas com o velho Fordão. Nunca soubemos se apanhava, se ficava de castigo ou se tinha que ajudar com horas extras, no trabalho do armazém ou nas entregas para os clientes.
Numa dessas vezes em que aguardávamos a oportunidade para “pegar” o nosso bólido, a sua avó, a grande matriarca da família, que talvez até fosse a real proprietária do Fordão, teimava em não sair da frente do portão, nos fundos do armazém, vendo o movimento da rua ou quem sabe vigiando o “nosso” carro. Aquela situação já estava nos deixando totalmente impacientes e irritados.
Quando então aponta na esquina o Galo, muito conhecido nosso, fiel escudeiro do Seu Jorge, administrador da piscina do Tênis Club. O Galo era muito conhecido na cidade, porque era ele que mensalmente passava, de casa em casa, cobrando os boletos de mensalidade do clube. Não me recordo exatamente quem foi, mas alguém de nós teve a brilhante ideia e disse ao nosso velho amigo Zezão:
“- Cara você se esconde, e aí pedimos pro Galo perguntar à sua avó se você está em casa. Quando ela entrar para procurá-lo, Zaz! vamos lá e pegamos o Fordão!”
Combinado assim com o Galo, que gentilmente topou nos dar a cobertura, se dirige o próprio para junto da vovó, dizendo: -Oi Vó sou o Galo, amigo do seu neto Zé Galinha Ele está?”. (Zé Galinha era o apelido pelo qual o Galo o chamava).
A nossa vovó, já conhecida por todos, pelo seu instável e péssimo humor,
sem falar nada entrou, e rapidamente voltou, porém com uma vassoura na
mão!
Sem dar tempo ao Galo a vovó foi logo mandando ver, com o cabo da vassoura, na
cabeça do nosso aliado, gritando:
-Saia daqui seu moleque, Saia! Aqui não tem Galo nem Galinha!
Depois dos risos daquela roubada e de contermos a raiva do amigo Galo, ficou
claro que não tivemos mais como darmos as nossas voltinhas motorizadas naquele
dia…
Foi através do Fordão que muitos de nós, puderam ter o primeiro contato com a direção de um carro. Sua espaçosa “sala de jantar” (espaço enorme na parte traseira) foi também onde tomamos os nossos primeiros “fogos” memoráveis e inesquecíveis.
Numa tarde de sábado, precisamente nesse carnaval de 1970, quando estávamos, creio eu, em nuns nove ou dez amigos dentro do Fordão, pegamos uma estradinha de terra que levava para a Aparecidinha, pequeno distrito da cidade e paramos em frente a uma tradicional mina de água. Nosso objetivo era começar o “esquenta” para a primeira noite do carnaval. Consumimos ali, em pouco tempo, um garrafão de vinho Sangue de Boi, “finíssimo” vinho de mesa, doação especial do Armazém, para as nossas festividades carnavalescas e claro ficamos completamente altos.
Como tínhamos, naquele ano, formado um bloco de carnaval, o Bloco do Havaí, ficou combinado que no começo da noite, deveríamos nos reunir na casa de um dos nossos amigos, cujo pai era gerente do principal banco da cidade, para então irmos todos juntos para o baile de Carnaval.
Lá chegando, nossa grande dificuldade, não foi reunir a todos, mas conseguir o “alvará de soltura” para que o filho do gerente nos acompanhasse ao baile, pois bêbado como um gambá, fruto daquela tarde regada a extrato de uva, ele só vomitava e não parava em pé. Seu pai exigia que ele permanecesse em casa e fosse dormir e o proibia de ir ao baile. Como não houve acordo com o patriarca, a nossa única saída foi darmos um jeito, com uma escada “emprestada” do vizinho, para que ele pulasse a janela e se juntasse a nós todos!
O Fordão foi também imprescindível quando queríamos fazer bonito e paquerar as “meninas de fora”, ou seja, visitar as fazendas onde as garotas, filhas, netas ou sobrinhas dos grandes fazendeiros vinham passar suas férias de verão, em especial nesses períodos de Carnaval. Muitos de nós inclusive, terminávamos os namoros com as namoradas, para estar livre e desimpedidos e assim namorar com alguma dessas “meninas de fora”!
O nosso carrão também nos conduziu pela estrada da Água Nova, clube de campo, incontáveis vezes, para passarmos o dia na beira da represa nadando e pescando. Foram também lá que curtimos muitas das noites regadas a churrasco, muita cachaça e jogo de truco. Com certeza foi ele, esse nosso grande companheiro, preto, de motor forte e ronco indescritível a grande testemunha da história dessas noites memoráveis, em que ecoavam pela represa os gritos de “truco ladrão!”
Nessas aventuras pelas estradas de terra, rumo ao clube de campo ou então para alguma das fazendas da região, procurávamos, sempre de dentro do Fordão, antes mesmo de chegar ao nosso destino, “planejar” o nosso menu. Isso era feito, atropelando uma galinha solta ou então “pegando emprestado”, algum leitãozinho perdido pelo caminho, para então cozinharmos junto com as batatas “escolhidas”, do velho armazém e assim fecharmos com chave de ouro o nosso cardápio “free”.
Certa vez o nosso Fordão, por um pequeno erro etílico de percurso, amanheceu preso e atolado dentro de uma plantação de milho de uma fazenda próxima, fruto de pequeno “rent a car” para um dos nossos, que necessitava urgentemente de um local para esticar a noite com uma antiga paquera, já que na época não haviam motéis e as entradas das fazendas eram as alternativas de plantão….
Foi assim que no dia seguinte, por volta das 11 horas da manhã o patriarca do armazém recebe estranha ligação, do administrador de uma fazenda próxima, dizendo:
– Meu amigo, desculpe incomodar, mas estou aqui agora na varanda da minha casa vendo o seu Ford “estacionado” dentro do meu milharal! Posso ver ainda que tem um moleque e uma menina, ambos pelados, acredito que completamente bêbados, pois os vejo esticados no capô tomando sol!
Depois deste vexame, tivemos que se virar para acudir o casal de amigos e ainda arrumarmos para guinchar o nosso Ford, para a oficina do espanhol, e tentar resolver, mais uma vez, o velho defeito da bomba de gasolina.
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O tempo voa, já são quase meia noite. Abro os olhos, saindo daqueles pensamentos e recordações me vejo sentado ao volante do Fordão, estacionado bem em frente ao Paço Municipal. Olho para o grande relógio e começo a ouvir as primeiras das doze badaladas.
No painel do velho amigo se acende uma luz vermelha de alerta, o alarme do Doc Brown: era o sinal de que meu tempo estava acabando e que eu tinha que sair muito rápido dali!
Então eu, o Marty contemporâneo, dou na partida do Fordão, a bomba de gasolina falha mais uma vez, corro pego a latinha de Parquetina no porta malas, refrigero a bomba, dou a partida, de novo, o motor rateia, rateia…. mas finalmente pega.
O Fordão então abre seu ronco e eu saio acelerando, em desabalada carreira, na direção da subida da estação, faço a curva no bebedouro de cavalos, entro pelos trilhos da velha sorocabana e como um foguete desapareço de volta para o futuro!

SOBRE O AUTOR:
José Luiz Ricchetti, nascido em São Manuel, é oriundo de famílias das mais tradicionais da cidade como Ricchetti, Ricci e Silva, é casado e tem 3 filhos. Engenheiro Mecânico pela Escola de Engenharia Industrial – EEI, com pós-graduação na FGV em Administração de Empresas e Comércio Exterior, tem MBA na área de Gestão de TI e Telecom pelo INATEL-UCAM, tendo atuado por mais de 35 anos, como executivo de grandes empresas brasileiras e multinacionais no Brasil e no Exterior.