(Texto criado e publicado por José Luiz Ricchetti)
O Dr. Rui Porto era um médico renomado e respeitado na cidade. Nascido numa família rica, tinha tido a oportunidade de fazer seu doutorado de medicina na Suíça. Ele era daqueles médicos à moda antiga, clínico geral, médico de família, coisa que hoje praticamente não existe mais.
Assim que se formou e voltou da Europa ele, influenciado por seu pai que havia sido militar cerrou fileira no exército, lutou na segunda guerra mundial junto com os Pracinhas na Itália, vindo a dar baixa, anos depois da guerra, como Coronel Médico reformado.
O Dr. Rui até tentou a política, se candidatando a prefeito, mas ignorado pelos políticos da sua cidade e muito decepcionado acabou desistindo da candidatura para voltar as suas origens e se dedicar totalmente à medicina, naquela sua pequena cidade natal.
Alguns anos depois do seu retorno à cidade, um jovem conterrâneo se candidatou ao cargo de prefeito da cidade e foi eleito, numa daquelas surpresas da política, difíceis de entender.
Após esse evento e devido a muita insistência, de seu grande amigo, pai do rapaz eleito, ele acabou aceitando o cargo de secretário de saúde do município.
A condição imposta por ele, para aceitar o cargo, foi a de que teria que ter carta branca para exercer o cargo, sem a mínima interferência de quem quer que fosse, inclusive do próprio prefeito.
Ao novo prefeito, só coube concordar com a proposição do renomado médico, ao afirmar: – Claro! Doutor Rui, o senhor tem absoluta e total autonomia.
Como secretário da saúde e com carta branca ele tinha agora a oportunidade de colocar em prática tudo aquilo que vinha estudando, nos últimos anos, principalmente na área da saúde mental, no âmbito das patologias psiquiátricas.
Sim, ele vinha se dedicando, há vários anos, a estudar a parte psíquica do ser humano. Nesse período, além de ter se correspondido com grandes psiquiatras contemporâneos de doutorado da Suíça e na Europa onde já havia publicado, em conjunto com muitos deles, vários trabalhos importantes em revistas médicas internacionais.
- Hoje percebo que a saúde da alma é a ocupação mais digna de um médico! Disse ele a seu mais novo discípulo, Dr. Rafael Sales, recém-formado em medicina e filho de um amigo e médico da cidade, o Dr. Benedito Sales.
- Sem dúvida! É a mais digna de um verdadeiro médico! Confirmou o Dr. Sales, querendo bajular um pouco o seu mestre.
- Veja Dr. Sales, que na nossa cidade, há muitos anos, ninguém tem se preocupado com a situação dos dementes.
E continuou com suas justificativas: - Cada louco desta cidade é mantido trancado em casa, quando oferece certo perigo, até morrer. E muitos daqueles que são relativamente mansos ficam perambulando pela cidade, sem assistência e ainda sujeitos a serem desrespeitados pela população.
- Acho que já passou da hora de termos um local para acolhê-las!
- Sem dúvida Dr. Rui! Arguiu o dedicado assistente…
Foi assim que surgiram as primeiras ideias do Dr. Rui Porto de criar um manicômio na cidade, ideia que acabou sendo acolhida pela maior parte da população, mas como era esperado não houve qualquer apoio político, nem do partido do novo prefeito e nem da oposição. Apesar de o Dr. Rui ser muito querido pela população os entes políticos detestavam a sua popularidade.
Com o aval da população e a respeitabilidade do Dr. Rui logo surgiram doações de empresários e fazendeiros, tendo inclusive uma tradicional família doado um dos seus imóveis, uma enorme casa no estilo anos 50, bem no centro da cidade, em frente à Igreja Matriz, para a instalação do manicômio.
Alguns meses depois, o Dr. Rui tinha conseguido tudo o que era necessário para dar início a reforma e instalação daquele seu hospital para doentes mentais.
O Hospício, apelidado pelo povo de ‘Casa Grande’, devido ao fato de que o casarão doado tinha historicamente esse apelido, foi inaugurado depois de quase um ano de reformas e adaptações visando sua nova função.
Apesar de não darem apoio político e nem financeiro para aquela obra os políticos entre eles, o próprio Governador do Estado, Deputados, Senadores, Juízes, Promotores, Desembargadores e as mais altas autoridades do estado não perderam a oportunidade de se fazer presente e tirar proveito da inauguração da nobre obra. O próprio bispo da Diocese, cuja sede era em Botucatu, foi uma dessas autoridades que inclusive fez questão de comparecer e ainda rezar a missa campal, que fez parte das solenidades.
Aproveitando o ensejo da visibilidade o jovem e esperto Prefeito também fez questão de inaugurar, na mesma ocasião, dois bustos de bronze que alocou acima da fonte do vai e vem, no histórico jardim público, em homenagem a dois antigos políticos da cidade.
Apesar dessa homenagem a população sabia que tais políticos nunca tinham feito nada de concreto pela cidade, durante o tempo em que militaram na vida pública.
O fato é que, passadas as comemorações, o Dr. Porto e seu assistente Dr. Sales, puderam iniciar os trabalhos com o cadastramento e internação de todos os loucos e deficientes mentais da cidade, naquele novo hospital hospício.
Alguns meses depois, face ao grande trabalho e capacidade do Dr. Rui e sua equipe, o hospício logo se tornou referência na região e em todo o estado, pela qualidade dos serviços de psiquiatria prestados.
O Dr. Rui não cabia de contentamento com os resultados obtidos em tão pouco tempo de funcionamento da Casa Grande.
- Estamos no caminho certo! Nossos pacientes débeis, agora, estão sendo bem cuidados! Dizia ele ao seu prestativo assistente.
Esses pacientes eram dos mais variados tipos, tanto que o Dr. Rui chegou a ficar espantado pela quantidade e diversidade, que nunca tinha imaginado existir na sua pequena cidade.
Entre os vários tipos havia alguns bastante criativos:
Um que se dizia ser a própria lua e que abria seus braços e mãos e em forma de movimentos circulares imitando o envio dos raios de luz do luar a quem quer que passasse na sua frente.
Outro que se dizia ser a floresta amazônica e que, segundo ele, estava pegando fogo! Em função disso ele corria pelos corredores, pelado e com as calças na mão, batendo alternadamente, com as mãos na traseira, como se estivesse apagando o fogo.
Também tinha aquele, traído pela mulher, que ficava os dias segurando uma pequena espingarda de rolha e dizendo o tempo todo, ao apontar a espingarda para as pessoas, que estava à procura do tal ‘ladrão de mulher’ para poder se vingar.
Havia também vários outros tipos, como aqueles que encarnavam personalidades famosas como Napoleão, Hitler, José Bonifácio, D. Pedro e que ficavam o tempo todo usando alguma roupa característica e imitando posições e trejeitos do seu alter ego.
Muitos dos internados se diziam grandes latifundiários, descendentes de algum dos capitães das capitanias hereditárias, sendo que havia um em especial que alto e de bigodes pretos, costumava usar sempre uma calça caqui e botas de cor marrom e canos longos além de um grande chapéu panamá. Tudo isso só para adornar a cabeça com brilhantina. Tudo isso, fornecido pela família.
Não faltavam também casos envolvendo religiosos, como a famosa carola da Igreja Matriz que acabou enlouquecendo. Ela se apresentava como sendo a N.S. Senhora em pessoa, carregando uma imagem da santa nas mãos, com um véu na cabeça, abençoando a todos e recitando ladainhas, prometendo a quem quer que rezasse com ela de que teria assegurado a entrada no Paraiso.
Um senhor magrinho de cabelos pretos, meio desdentado se dizia vendedor só de bilhetes premiados. Ele, um antigo vendedor de bilhetes da cidade, e ficava o tempo todo circulando com vários papéis nas mãos, que dizia ser um daqueles bilhetes de loteria já premiado.
Contava-se que ele teria ficado louco depois que lhe pregaram uma peça, noticiando falsamente, através de um microfone embutido no seu rádio, de que um bilhete de loteria encalhado e que tinha ficado sem vender, havia sido premiado.
Sem falar no médium ‘Pedrão de Deus’ internado depois de um escândalo onde ele queria obrigar as suas fiéis e assistidas a entrarem em uma sala privada com ele onde elas deveriam, segundo o próprio, se livrar de suas roupas para iniciarem um processo de ‘purificação’….
Enfim, ali na Casa Grande tinha de tudo um pouco, loucos de grade, altistas, débeis, megalomaníacos, esquizofrênicos e toda espécie de demência conhecida na literatura médico-psiquiátrica.
Aos poucos o Dr. Rui procurou classificá-los de diversas formas, primeiramente em duas classes principais: os agressivos e os mais tranquilos, para em seguida começar a criar subclasses, monomanias, delírios, alucinações, esquizofrenias, etc.
A Casa Grande, dizia ele ao vigário, tem hoje tamanha diversidade que sinto que somos uma espécie de novo mundo onde existe o tempo presente, o tempo passado, o tempo futuro, o mundo terreno e o mundo espiritual.
O Padre Natalino, grande amigo do Dr. Rui, lhe dizia então, em tom de brincadeira: – Vou ter que excomungá-lo e denunciá-lo ao Papa por suas palavras!
Tempos depois o Dr. Rui ampliou os estudos e começou a se concentrar nos políticos da cidade, pois ele achava ter ali um campo fértil de anormalidades.
Ele então, procurava analisar os hábitos de cada um deles, as horas de trabalho, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências, profissão, costumes, circunstâncias, acidentes, doenças de outra espécie, antecedentes na família. Seu estudo já estava bem aprofundado e ele até já tinha chegado a uma conclusão interessante, mas não tinha poderes para colocá-la em prática.
Foi então que um fato novo alterou toda essa situação.
Ocorreu uma revolução no país com queda do Governo e a tomada do poder pelos militares, com a cassação da maioria dos políticos.
Prontamente o Dr. Rui Porto foi designado pelos militares para assumir o comando da cidade e de toda a região, visto que, como Coronel, era a mais alta patente presente naquelas pragas.
A partir daí, conta-se que a Casa Grande passou também a receber ‘loucos’, comunistas e inimigos da revolução fazendo com que seus porões ficassem superlotados.
O poder do Cel. Rui era total. Ele mandava e desmandava em tudo na cidade!
Embora com essa grande responsabilidade e outras atribuições, político-administrativas ele continuou firme no aprofundamento dos seus estudos médicos junto aos antigos políticos da cidade.
Seus estudos já estavam praticamente concluídos quando ele assumiu essas funções militares e de comando da cidade, logo após a revolução. A grande diferença é que agora, na posição que em que se encontrava, qualquer atitude, vindo dele, era inquestionável.
Ninguém tinha coragem de levantar um só dedo para ir contra ele. Sua palavra era lei e além do mais tinha o comando de todas as forças militares e paramilitares da região.
Voltando aos seus últimos estudos, já estava bem claro para ele o que tinha que ser feito e agora era chegado o momento exato para isso.
Ele havia concluído que a debilidade na cidade não era exclusividade dos deficientes mentais, internados na Casa Grande, cujas patologias eram bem claras e definidas, mas de muito mais gente.
Agora ele sabia que a loucura ia muito além disso e já permeava outras camadas da sociedade…
Agora ele entendia melhor a tal praga dos padres que fez a cidade, estagnar no tempo…
Agora ele entendia a fuga dos jovens em busca de um lugar ao sol em outras cidades…
- Dr. Rafael, note que interessante, como são pitorescos esses políticos. Isso não pode ser normal.
Dizia ele ao seu assistente enquanto analisava seus alfarrábios de pesquisas, escritos num pequeno livreto.
Nesse livreto, o Dr. Rui tinha compilado e analisado vários fatos ocorridos com políticos que comprovavam, segundo ele, o lado patológico de muitos dos personagens.
- Veja agora mais isto Dr. Sales:
Recentemente, num comício para reeleição o nosso Prefeito disse: – Queridos cidadãos, durante todo o meu mandato, sempre pautei pela honestidade. Tenham a certeza de que neste bolso (batendo no bolso da calça com a mão) nunca entrou dinheiro do povo. Neste instante um desses sujeitos, que por sinal está internado aqui, gritou para o Prefeito:
- Calça nova, hein Prefeito?
Logo prenderam o tal sujeito e o taxaram de louco
- Esse sujeito é louco Dr. Sales?
- Claro que não, pelo contrário me parece muito são! Arguiu o assistente.
Veja, este outro caso de um nosso conterrâneo, depois de eleito Governador. Ele resolveu criar um selo com sua foto para marcar o seu governo. Poucos dias após o lançamento ficou furioso ao ouvir reclamações de que o selo não grudava nos envelopes. Convocou então o Diretor Regional do Correios, responsável pela impressão e pediu que ele investigasse o assunto. O Diretor dos Correios relatou o problema encontrado ao Governador: – ‘Não há nada de errado com a qualidade dos selos, o problema é que o povo está cuspindo do lado errado! ‘
Percebe Dr. Sales o quanto o povo é inteligente?
- Verdade Dr. Ruy, inteligentíssimo
- Veja esta outra situação Dr. Sales
Um vereador, que era também o Presidente da Câmara, em plena campanha para reeleição chegou num bairro aqui da cidade e perguntou aos moradores do que eles mais precisavam.
– Doutor, nós temos dois problemas grandes aqui na vila.
– Qual é o primeiro?
– Não temos ônibus.
O Vereador pegou então o celular, discou um número e falando alto disse - Acabei de falar com o Prefeito e a partir de amanhã já teremos uma linha de ônibus funcionando aqui.
Em seguida perguntou aos moradores:
– Pronto, primeiro problema resolvido. Qual é o segundo problema?
– Aqui não pega sinal de celular, Doutor!!!
Veja este caso Dr. Sales. Quem é que precisa ser internado? O vereador ou o cidadão?
- Claro que é o vereador Dr. Rui!
Tenho o caso de um outro vereador, que sempre foi muito conhecido na cidade por participar de qualquer evento, com o intuito de se tornar mais popular.
Um dia morreu um fazendeiro daqui da cidade e ele foi ao enterro.
E lógico, aproveitou para discursar.
- Aqui jaz um trabalhador, um homem honesto, pai de família, grande fazendeiro, uma pessoa maravilhosa.
Ao se curvar sobre a cova para jogar o punhado de terra, a sua dentadura caiu na cova e ele sem perder a pose disse, na maior cara de pau: - Leve junto, meu amigo, o meu último sorriso!!!
Isso é coisa de gente sã? Isso é coisa de quem não tem nada na cabeça e pensa que o povo é bobo. Então só pode ser coisa de louco! Concorda Dr. Sales?
- Claro Dr. Rui! É sim uma coisa de louco!
Veja esta outra…
Um certo deputado veio nos visitar aqui na Casa Grande.
- Você deve se lembrar desse dia Dr. Sales…
O tal Deputado, já em campanha eleitoral foi recepcionado por mim e os funcionários, além de que na plateia estavam também aqueles nossos pacientes mais tranquilos.
– Viva o Deputado! Viva o Deputado! gritavam os alienados, vibrando como nunca, incentivados pelos cabos eleitorais do Deputado infiltrados na plateia.
Me lembro que ao ver um grupo de pessoas caladas, o nosso Prefeito, irmão do tal Deputado, que estava ao meu lado, questionou:
– E aquele grupo lá no canto, porque não gritam também ‘Viva o Deputado! - Será que eles são todos contra nós?
Não me aguentei e lhe respondi:
– Não Sr. Prefeito! Eles não gritam exatamente porque não são loucos! - Eles sãos apenas os nossos médicos!!!
Você concorda comigo Dr. Sales que esses políticos não têm qualquer noção das coisas?
-Sem dúvida Dr. Rui!
Depois de terminar sua exposição de outros inúmeros casos ao seu assistente o Dr. Rui se virou para ele e disse:
- Chame todos os nossos funcionários aqui no salão que eu já tomei minha decisão!
Aos poucos foram todos entrando no grande auditório e assim que o salão se encheu, o Dr. Rui começou sua explanação: - Ciência é a Ciência.
- Hoje, depois de todas as minhas pesquisas, estou convencido que a loucura permeia a nossa sociedade e em grau muito maior que os dos nossos pacientes crônicos, que estão internados aqui na Casa Grande.
- Pensei muito e pesei minha decisão final, considerando os resultados da pesquisa e os estudos que tenho feito.
- Hoje percebo que existem pessoas dentro da nossa cidade que são muito mais débeis e desequilibradas que todos os demais que aqui estão internados.
- Não podemos mais deixar nas ruas mais nenhum desses mentecaptos.
- Assim minha decisão está tomada:
- Soltem os loucos e internem os políticos!
José Luiz Ricchetti