COLUNA DO RICCHETTI – Pés descalços

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PÉS DESCALÇOS

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Em São Manuel, terra onde os sinos tocam mais forte no coração do que nos campanários, viveu Tuffi – o único filósofo que aprendi a conhecer através do meu pai, que me dizia que o Tuffi era aquele que usava chinelo de dedo, colecionava lembranças e citava a própria infância como tese de doutorado da alma.

Foi muito amigo do meu pai, José, e sempre dizia que os dois, quando jovens, viviam mais mergulhados nas travessuras do que peixe no rio. Ele tinha aquela sabedoria que não se aprende nos livros, mas nas calçadas, nos quintais, nos bancos da praça onde a conversa rende mais do que o tempo. Muitas das suas histórias e frases aprendi nas conversas com meu pai…

– Quem nunca brincou de ver quem ficava mais tempo sem respirar, embaixo da água, não teve infância, ele dizia, com o olhar preso em algum verão distante.

Ele entendia os ciclos do mundo como quem entende o ciclo de uma pipa: sobe, dança, estica a linha…, mas um dia precisa descer, pra não se perder no infinito.

– Homens fortes criam tempos fáceis, murmurava, acendendo o cigarro de palha com aquele cuidado ritualístico. Mas tempos fáceis criam homens fracos… e assim o mundo gira, até alguém arregaçar as mangas de novo.

Mas não era de fraqueza que ele falava com mais gosto. O que lhe arrancava mesmo sorrisos era a lembrança dos pés descalços na cozinha de casa, das ruas de terra batida e do cheiro do feijão da mãe, que ele jurava ter sido temperado com a eternidade.

– Minha energia se renova toda vez que sinto os mesmos sons e cheiros da minha infância, dizia, como quem confessa um segredo sagrado. É isso que me revigora a mente e me salva do cansaço dos dias adultos.

Para ele, felicidade era uma palavra que morava entre o primeiro carrinho de rolimã e a última bola de meia.

– Se não fosse a infância que tive em São Manuel, confessava, teria passado a vida sem saber o que é a felicidade.

Nos últimos tempos, quando ele já não caminhava como antes, sua memória andava quilômetros. Voltava para os trilhos da antiga estação, onde o pai o ensinou a andar na linha. Hoje, quando me recordo de tudo aquilo que meu pai me contou sobre ele, é como se fosse atropelado por um trem de sabedoria.

A vida, segundo ele, era a arte de continuar moleque por dentro: com a alma leve como pluma, o coração doce como mel e um sorriso por minuto.

E era com aquele seu sorriso franco que ele lembrava:

–  A gente pode ter conhecido muitos lugares bonitos nesta vida, mas é uma simples reunião com os amigos de infância que nos faz dar a volta ao mundo.

Hoje, quando os tempos parecem girar de novo em torno das dificuldades, volto às palavras do Tuffi. E compreendo. A roda do tempo pode ser dura, mas o eixo que a sustenta… é feito de lembrança boa, daquelas que não enferrujam.

E enquanto houver alguém que se recorde dos pés descalços no chão da cozinha, o mundo ainda terá esperança.

José Luiz Ricchetti – 12/04/25

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Em São Manuel, terra onde os sinos tocam mais forte no coração do que nos campanários, viveu Tuffi – o único filósofo que aprendi a conhecer através do meu pai, que me dizia que o Tuffi era aquele que usava chinelo de dedo, colecionava lembranças e citava a própria infância como tese de doutorado da alma.

Foi muito amigo do meu pai, José, e sempre dizia que os dois, quando jovens, viviam mais mergulhados nas travessuras do que peixe no rio. Ele tinha aquela sabedoria que não se aprende nos livros, mas nas calçadas, nos quintais, nos bancos da praça onde a conversa rende mais do que o tempo. Muitas das suas histórias e frases aprendi nas conversas com meu pai…

– Quem nunca brincou de ver quem ficava mais tempo sem respirar, embaixo da água, não teve infância, ele dizia, com o olhar preso em algum verão distante.

Ele entendia os ciclos do mundo como quem entende o ciclo de uma pipa: sobe, dança, estica a linha…, mas um dia precisa descer, pra não se perder no infinito.

– Homens fortes criam tempos fáceis, murmurava, acendendo o cigarro de palha com aquele cuidado ritualístico. Mas tempos fáceis criam homens fracos… e assim o mundo gira, até alguém arregaçar as mangas de novo.

Mas não era de fraqueza que ele falava com mais gosto. O que lhe arrancava mesmo sorrisos era a lembrança dos pés descalços na cozinha de casa, das ruas de terra batida e do cheiro do feijão da mãe, que ele jurava ter sido temperado com a eternidade.

– Minha energia se renova toda vez que sinto os mesmos sons e cheiros da minha infância, dizia, como quem confessa um segredo sagrado. É isso que me revigora a mente e me salva do cansaço dos dias adultos.

Para ele, felicidade era uma palavra que morava entre o primeiro carrinho de rolimã e a última bola de meia.

– Se não fosse a infância que tive em São Manuel, confessava, teria passado a vida sem saber o que é a felicidade.

Nos últimos tempos, quando ele já não caminhava como antes, sua memória andava quilômetros. Voltava para os trilhos da antiga estação, onde o pai o ensinou a andar na linha. Hoje, quando me recordo de tudo aquilo que meu pai me contou sobre ele, é como se fosse atropelado por um trem de sabedoria.

A vida, segundo ele, era a arte de continuar moleque por dentro: com a alma leve como pluma, o coração doce como mel e um sorriso por minuto.

E era com aquele seu sorriso franco que ele lembrava:

–  A gente pode ter conhecido muitos lugares bonitos nesta vida, mas é uma simples reunião com os amigos de infância que nos faz dar a volta ao mundo.

Hoje, quando os tempos parecem girar de novo em torno das dificuldades, volto às palavras do Tuffi. E compreendo. A roda do tempo pode ser dura, mas o eixo que a sustenta… é feito de lembrança boa, daquelas que não enferrujam.

E enquanto houver alguém que se recorde dos pés descalços no chão da cozinha, o mundo ainda terá esperança.

José Luiz Ricchetti – 12/04/25

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