Há memórias que vivem nas superfícies mais simples, como os caquinhos de cerâmica que, nas décadas de 50 e 60, tingiram calçadas e quintais de um Brasil que aprendia a colorir a vida com o que tinha.
Era um tempo em que a cidade de São Paulo ostentava duas grandes indústrias de cerâmica, e delas saíam lajotas quadradas de tons vivos: vermelho, amarelo e preto. Nas casas de classe média e nos pisos das lojas, essas lajotas eram sinônimo de resistência e funcionalidade. Mas nem todas sobreviviam ao rigor das máquinas. Quebradas, essas peças imperfeitas eram condenadas ao esquecimento, enterradas como refugo sem serventia.
Até que um olhar mais atento mudou tudo. Um operário, daqueles que enxergam beleza onde ninguém mais vê, pediu à fábrica permissão para levar alguns desses cacos descartados. Com as mãos calejadas e o coração criativo, decidiu que o chão do seu quintal merecia mais do que cimento cinza.
Ao misturar os pedaços de cerâmica vermelhos com toques negros e amarelos, criou um mosaico que, em sua simplicidade, transbordava vida e originalidade. O chão da casa daquele homem tornou-se uma celebração de cores, um testemunho de que até os fragmentos rejeitados podem compor algo extraordinário.
A novidade logo se espalhou. Os vizinhos admiravam o quintal como quem descobre uma pequena obra de arte. O rumor chegou aos bairros vizinhos, atravessou as ruas e ganhou corações. Não tardou para que, em toda a cidade, os caquinhos de cerâmica deixassem de ser lixo para se tornarem desejo. A febre dos mosaicos nasceu e, ironicamente, as fábricas passaram a quebrar as peças inteiras de propósito, alimentando a sede por esse novo símbolo de criatividade e beleza.
E assim são nossas vidas. Trazemos em nós cacos de histórias quebradas pelo tempo, pedaços que, às vezes, desprezamos ou enterramos sem perceber seu valor. Quantas vezes ignoramos as lições que a dor nos deixou, ou a beleza de momentos que, embora fragmentados, têm o poder de transformar nossos quintais interiores?
Talvez precisemos aprender com aquele operário visionário. Recolher nossos cacos, abraçar as imperfeições e, com paciência e amor, compor um mosaico único de experiências e aprendizados. E, por que não, misturar cores novas, ousar quebrar a monotonia e deixar a vida mais rica, mais vibrante?
É preciso lembrar: a experiência, ainda que nos cobre caro, é o professor mais sábio. E os cacos que carregamos, por menores e quebrados que sejam, têm o poder de nos ensinar a viver com mais profundidade.
Afinal, a riqueza da vida não está em sua perfeição, mas no modo como reunimos os pedaços e os transformamos em algo que inspire, que encante.
Então, não jogue fora seus cacos. Recolha-os com carinho, misture suas cores e crie um mosaico que não apenas embeleze o seu caminho, mas que também inspire aqueles que ainda caminham sobre pisos cimentados.
Porque, no fim, o que se leva da vida é a vida que se vive.
José Luiz Ricchetti – 05/12/24