COLUNA DO RICCHETTI: Olhos de poeta

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Jose-Luiz-1968 COLUNA DO RICCHETTI: Olhos de poeta

Foi numa tarde de nuvens distraídas que deixei São Manuel. A estação rodoviária parecia flutuar em silêncio, como se suas paredes, os bancos e até o vento soubessem que eu partia não apenas de um lugar, mas de um tempo. A cidade, com suas ruas que conheciam o desenho dos meus passos, ficava para trás. Algo em mim se despedia; algo mais silencioso que qualquer adeus.

O barulho do motor do ônibus ressoava nos meus ouvidos como a cadência de um coração, e já na estrada, pela janela, eu via os campos se esticarem em tons de verde e dourado. Eram paisagens que sempre estiveram ali, mas, de repente, pareciam outras. Notei as árvores pela primeira vez não como abrigo de sombras, mas como esculturas vivas que o vento esculpia. Os fios de arame farpado, que tantas vezes ignorei, agora brilhavam como colares antigos, e os ipês, sempre tão nossos, pulsavam como uma despedida florida.

Foi quando percebi: algo havia mudado.

Era como se o mundo tivesse ganhado uma nova textura, como se a lente do cotidiano tivesse sido trocada. Tudo parecia respirar mais devagar, e eu sentia que meus olhos, antes tão ocupados em ver o prático, haviam despertado para o essencial. Pensei em Alberto Caeiro, o heterônimo de Fernando Pessoa, quando fala do menino que o ensinara a olhar as pedras com espanto, e desejei ter tido esse menino ao meu lado em São Manuel. Quem sabe ele teria me ensinado antes o que era necessário perder para enxergar.

Anos se passaram. Morei na Europa, onde aprendi que até mesmo a luz carrega sotaques. Lá, os dias pareciam filtrados por uma paleta mais fria, e as cidades, com suas fachadas antigas e ruas de pedra, me ensinavam a ver o tempo como algo palpável. Andei pelas margens do Sena em Paris, pelos canais de Veneza, pelas ruas históricas de Roma e pelas ladeiras de Lisboa, e em cada esquina me aguardava um assombro. Não eram os monumentos que me tocavam, mas as pequenas coisas: o murmúrio de uma fonte esquecida, o reflexo de um vitral ao entardecer, a quietude de um jardim onde as folhas caíam sem pressa, como se a gravidade fosse apenas um convite à dança.

Foi na lá que meus olhos começaram a amadurecer, mas foi ao voltar ao Brasil que eles, enfim, floresceram.

Quando cheguei de volta a São Paulo, a cidade parecia mais alta, mais intensa. O concreto dos edifícios que antes me intimidava agora era poesia em bruto. As fachadas grafitadas, as janelas acesas nas madrugadas e até as calçadas esburacadas me pareciam carregadas de histórias que eu nunca havia notado. Era como se, depois de tanto tempo fora, a nossa capital também tivesse se transformado.

Descobri que o caos pode ter harmonia. No Mercado Municipal, entre os aromas de frutas e temperos, vi beleza nos gestos apressados dos vendedores. Nos ônibus lotados, observei os olhos cansados das pessoas e percebi que cada olhar carregava um pedaço de sonho, esperança ou desilusão. Até o trânsito, com seus roncos e buzinas, parecia uma sinfonia urbana, desordenada, mas cheia de vida.

Os parques, que antes me passavam despercebidos, agora pareciam ilhas de eternidade. Caminhei pelo Ibirapuera como quem descobre um templo, notando a textura dos troncos, o brilho do lago e os reflexos dos prédios ao fundo, como se a natureza e a cidade fossem cúmplices em um segredo. Até mesmo a garoa – antes tão banal – me tocava agora como um afago delicado, um véu que cobria São Paulo com melancolia e encanto.

E então, entendi: o que mudara não eram os lugares, mas os olhos que os viam.

Aquela mesma São Manuel, com sua serenidade quase esquecida, continuava em mim, assim como os ecos das cidades europeias. Mas foi São Paulo, essa gigante inquieta, que me mostrou como os contrastes podem ser também poesia. Foi ali, naquela cidade de concreto, que aprendi que cada esquina guarda um universo, que a pressa não apaga a beleza e que, no meio do cinza, sempre haverá um ipê teimoso florescendo.

Os olhos que ganharam o mundo na Europa voltaram ao Brasil mais atentos, mais abertos, e encontraram poesia onde antes só havia rotina. Porque é isso que acontece quando aprendemos a ver: não importa onde estejamos, o mundo nunca mais será o mesmo.

Hoje, vejo tudo como uma criança, ao olhar a sua caixa de brinquedos. Para ela, cada pedra é uma joia, cada folha uma aventura, cada sombra um mistério. Seus olhos não veem para fazer; veem para sentir.

E hoje, quando volto meus olhos para São Paulo, com seu caos e sua grandeza, e penso em São Manuel, com suas memórias e silêncios, sei que ambos moram em mim. Uma me deu raízes, a outra me deu asas. E, no meio desse voo, eu finalmente encontrei meus olhos de poeta.

José Luiz Ricchetti – 22/11/24

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Foi numa tarde de nuvens distraídas que deixei São Manuel. A estação rodoviária parecia flutuar em silêncio, como se suas paredes, os bancos e até o vento soubessem que eu partia não apenas de um lugar, mas de um tempo. A cidade, com suas ruas que conheciam o desenho dos meus passos, ficava para trás. Algo em mim se despedia; algo mais silencioso que qualquer adeus.

O barulho do motor do ônibus ressoava nos meus ouvidos como a cadência de um coração, e já na estrada, pela janela, eu via os campos se esticarem em tons de verde e dourado. Eram paisagens que sempre estiveram ali, mas, de repente, pareciam outras. Notei as árvores pela primeira vez não como abrigo de sombras, mas como esculturas vivas que o vento esculpia. Os fios de arame farpado, que tantas vezes ignorei, agora brilhavam como colares antigos, e os ipês, sempre tão nossos, pulsavam como uma despedida florida.

Foi quando percebi: algo havia mudado.

Era como se o mundo tivesse ganhado uma nova textura, como se a lente do cotidiano tivesse sido trocada. Tudo parecia respirar mais devagar, e eu sentia que meus olhos, antes tão ocupados em ver o prático, haviam despertado para o essencial. Pensei em Alberto Caeiro, o heterônimo de Fernando Pessoa, quando fala do menino que o ensinara a olhar as pedras com espanto, e desejei ter tido esse menino ao meu lado em São Manuel. Quem sabe ele teria me ensinado antes o que era necessário perder para enxergar.

Anos se passaram. Morei na Europa, onde aprendi que até mesmo a luz carrega sotaques. Lá, os dias pareciam filtrados por uma paleta mais fria, e as cidades, com suas fachadas antigas e ruas de pedra, me ensinavam a ver o tempo como algo palpável. Andei pelas margens do Sena em Paris, pelos canais de Veneza, pelas ruas históricas de Roma e pelas ladeiras de Lisboa, e em cada esquina me aguardava um assombro. Não eram os monumentos que me tocavam, mas as pequenas coisas: o murmúrio de uma fonte esquecida, o reflexo de um vitral ao entardecer, a quietude de um jardim onde as folhas caíam sem pressa, como se a gravidade fosse apenas um convite à dança.

Foi na lá que meus olhos começaram a amadurecer, mas foi ao voltar ao Brasil que eles, enfim, floresceram.

Quando cheguei de volta a São Paulo, a cidade parecia mais alta, mais intensa. O concreto dos edifícios que antes me intimidava agora era poesia em bruto. As fachadas grafitadas, as janelas acesas nas madrugadas e até as calçadas esburacadas me pareciam carregadas de histórias que eu nunca havia notado. Era como se, depois de tanto tempo fora, a nossa capital também tivesse se transformado.

Descobri que o caos pode ter harmonia. No Mercado Municipal, entre os aromas de frutas e temperos, vi beleza nos gestos apressados dos vendedores. Nos ônibus lotados, observei os olhos cansados das pessoas e percebi que cada olhar carregava um pedaço de sonho, esperança ou desilusão. Até o trânsito, com seus roncos e buzinas, parecia uma sinfonia urbana, desordenada, mas cheia de vida.

Os parques, que antes me passavam despercebidos, agora pareciam ilhas de eternidade. Caminhei pelo Ibirapuera como quem descobre um templo, notando a textura dos troncos, o brilho do lago e os reflexos dos prédios ao fundo, como se a natureza e a cidade fossem cúmplices em um segredo. Até mesmo a garoa – antes tão banal – me tocava agora como um afago delicado, um véu que cobria São Paulo com melancolia e encanto.

E então, entendi: o que mudara não eram os lugares, mas os olhos que os viam.

Aquela mesma São Manuel, com sua serenidade quase esquecida, continuava em mim, assim como os ecos das cidades europeias. Mas foi São Paulo, essa gigante inquieta, que me mostrou como os contrastes podem ser também poesia. Foi ali, naquela cidade de concreto, que aprendi que cada esquina guarda um universo, que a pressa não apaga a beleza e que, no meio do cinza, sempre haverá um ipê teimoso florescendo.

Os olhos que ganharam o mundo na Europa voltaram ao Brasil mais atentos, mais abertos, e encontraram poesia onde antes só havia rotina. Porque é isso que acontece quando aprendemos a ver: não importa onde estejamos, o mundo nunca mais será o mesmo.

Hoje, vejo tudo como uma criança, ao olhar a sua caixa de brinquedos. Para ela, cada pedra é uma joia, cada folha uma aventura, cada sombra um mistério. Seus olhos não veem para fazer; veem para sentir.

E hoje, quando volto meus olhos para São Paulo, com seu caos e sua grandeza, e penso em São Manuel, com suas memórias e silêncios, sei que ambos moram em mim. Uma me deu raízes, a outra me deu asas. E, no meio desse voo, eu finalmente encontrei meus olhos de poeta.

José Luiz Ricchetti – 22/11/24

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