Aquela manhã de outono em São Paulo não trazia nada que pudesse antecipar o inesperado. Era apenas mais um dia, com compromissos agendados e o café forte a tentar espantar o sono enquanto eu me preparava para mais uma viagem de negócios, desta vez, à China. Mas um detalhe, pequeno e aparentemente trivial, mudaria tudo: a rota incluía uma escala em Istambul.
“Istambul?”, pensei alto. Uma memória vaga me tomou – o velho professor de História, Benjamim, que carinhosamente apelidamos de ‘Bodão – dada a sua sisudez e as vezes palavras brutas- e suas lições sobre Constantinopla, o Império Bizantino, o estreito de Bósforo.
O Bodão era assim, duro, quase intimidante, mas tinha a rara habilidade de despertar a curiosidade até mesmo nos estudantes mais dispersos, com suas chamadas orais de surpresa, que nos obrigava a estar sempre com a matéria na ponta da língua. A imagem da Constantinopla que ele pintava era grandiosa, uma cidade que já foi o centro do mundo. Aquela escala em Istambul acendia um desejo, quase juvenil, de ver de perto as histórias que o Bodão, de seu jeito inconfundível, plantara em nossa imaginação.
Assim, pedi à secretária que confirmasse minha passagem com uma parada adicional de três dias em Istambul. Queria viver de perto a velha Constantinopla, pensei…
O voo foi longo, e a chegada à cidade parecia quase um sonho. As ruas, os sons, a mistura de culturas, tudo me remetia a um lugar de conexão entre tempos e povos. A ‘Hagia Sophia’ e a ‘Mesquita Azul’ eram mais imponentes do que qualquer foto podia mostrar, e caminhar por seus espaços era como pisar na própria história.
Foi na visita à Mesquita Azul que o destino se revelou. Um garoto, não mais do que doze anos, aproximou-se de mim com um sorriso persistente e uma oferta: “Eu serei seu guia.” Com certo receio, aceitei. Chamava-se Jamal, e, com sua voz cheia de entusiasmo, guiou-me pela história daquela cidade, explicando os significados escondidos em cada mosaico, em cada minarete. A cada passo, era impossível não pensar que a história, de algum modo, havia nos unido ali, naquele dia.
Ao final do passeio, comentei sobre sua generosidade e lhe ofereci um agradecimento. Jamal, com um sorriso ainda mais largo, insistiu para que eu conhecesse a loja de tapetes de seu avô. Havia algo naqueles olhos que me fez aceitar o convite.
Chegamos a uma imponente loja, onde fui recebido como alguém de casa. Jamal me levou até uma varanda enorme, adornada por tapetes e vitrais que pareciam saídos das histórias das Mil e Uma Noites. No centro, sentado em uma almofada, estava um ancião, o avô de Jamal. Ele era um homem de olhar profundo e palavras sábias que logo me acolheu para um delicioso chá de hibisco e tâmaras. Estar ali, admirando o pôr do sol e aquela vista da ponte do Bósforo e a Catedral e Mesquita de Hala Sophia me transportou no tempo para a era dos sultões. O avô de Jamal, então, apenas olhou para mim, com seus olhos rasos d’água, fez um gesto de respeito abaixando a cabeça e fez um inesperado agradecimento: “Obrigado por valorizar o trabalho de meu neto.”
Naquele instante, senti que minha jornada tinha mudado de propósito. A viagem de negócios à China era agora secundária, pois ali, diante daquele homem, eu compreendia que havia algo maior em jogo. Então, com sua voz calma e convincente, ele me falou sobre a vida, comparando-a a cinco bolas: trabalho, família, saúde, amigos e espírito. Apenas o trabalho é uma bola de borracha, que pode quicar e voltar. As demais são de vidro: se caírem, quebram-se.
Enquanto ele falava, entendi que aquele encontro, em meio a uma escala não planejada, não era acaso. A história que um dia me fora contada nas salas de aula, pelo querido Bodão, desdobrava-se agora, quase 30 anos depois, em lições que a vida – ou algo maior – havia reservado para mim.
Quando saí dali, não era mais o mesmo. Me senti como se tivesse tirado nota dez na chamada oral da vida…
José Luiz Ricchetti – 06/11/24