Ricchetti: Minha experiência no Tiro de Guerra – TG 02-047

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cabeca-ricchetti Ricchetti: Minha experiência no Tiro de Guerra - TG 02-047

Saímos das nuvens e começamos a descer até aterrissar bem em frente à Sede do Tiro de Guerra. O Ford havia me levado mais uma vez, para a minha querida São Manuel e o relógio do tempo no painel, apontava o ano de 1970.

Rapidamente desço e curioso olho pela janela da sua sede e vejo lá no fundo o nosso querido Sargento à frente de todos os atiradores, inclusive eu! Todos nós, impecáveis dentro de nossas fardas novas, bem passadas pelas orgulhosas mães. Todos nós garbosos, com os coturnos reluzentes, quepes tinindo na cabeça e cabelos cortados ao estilo militar.

227.1-TG-02-047 Ricchetti: Minha experiência no Tiro de Guerra - TG 02-047

Aquela visão fez com que eu começasse a recordar as boas coisas e os fantásticos dias que vivi naquele ano de 1970, como Atirador do TG 02-047.
Nessa época, ter os cabelos cortados à moda militar era uma situação bem inusitada, pois estávamos em pleno 1970, ano do centenário da cidade e apogeu da “beatlemania”. Ou seja, época em que a moda era usar os cabelos bem compridos, curtir o psicodélico, e do slogan “fazer amor e não fazer a guerra”.

Talvez, por saber de tudo isso, é que o nosso Sargento estava todo animado, naquela manhã, primeiro dia em que, nós, os novatos, iniciávamos o período de instrução militar. O Sargento logo começou a manhã com uma pequena introdução do que é o Exército Brasileiro e qual a função do Tiro de Guerra:
– O Exército tem como missão preservar e garantir a defesa da pátria, zelar pelo cumprimento pleno da constituição e pela manutenção da lei e da ordem. Em tempos de paz, uma das principais funções do Exército é defender as fronteiras brasileiras, garantindo a soberania nacional. O Tiro de Guerra (TG) é uma instituição militar do Exército Brasileiro encarregada de formar atiradores e cabos, os chamados “Reservistas do Exército”.

– A organização de um TG ocorre através de um acordo firmado entre os Municípios e o Comando da Região Militar, onde o Exército fornece os instrutores, fardamentos e equipamentos, enquanto o Município disponibiliza as instalações, daí a grande responsabilidade dos Prefeitos.”

E por aí foi a explanação do nosso Sargento, por pelo menos mais umas duas horas.

Todos ali, com muito sono e muitos sonhos, naquele primeiro dia, ouvindo uma explanação sobre o Exército, ao invés de pegar em armas e dar uns tiros, que acredito era a vontade da maioria de nós atiradores de primeira viagem.

Afinal, desde os nossos tempos de brincadeiras de “mocinho e bandido” acho que ficávamos imaginando o dia em que seguraríamos um fuzil de verdade e daríamos uns tiros, nem que fosse para o alto.
Terminada a explanação, o Sargento foi lendo uma longa lista com os números e os “Nomes de Guerra” (normalmente o nome de guerra é o sobrenome) de cada um de nós, os atiradores.

Esclareceu que daquele dia em diante, cada vez que ele gritasse o nosso número, deveríamos ficar em posição de sentido e gritar o “Nome de Guerra” e vice-versa, sempre seguidos de um “Sim Seu Sargento”.
Passados mais de 40 anos ainda não esqueço a primeira vez em que ouvi o meu número, gritado pelo nosso Sargento:
– Atirador 36
(Eu em posição de sentido, gritei)
– Silva! Seu Sargento!

São emoções como estas, do primeiro dia de TG, que ficam guardadas na nossa mente, no nosso coração, tão fixas como aquele pequeno pedaço de pano, que se coloca do lado esquerdo, acima do bolso, onde vem escrito o nosso nome de guerra, em tinta preta, para se destacar no fundo cor verde oliva da nossa farda.

Os nomes de guerra ficam bem presos, do lado esquerdo do peito, bem em cima do coração, talvez para nos lembrar do amor que devemos ter pelo nosso país, pelo nosso exército, pela nossa bandeira.
Após aquelas explicações sobre número e nome de guerra, o Sargento perguntou, se por acaso, alguém tocava algum instrumento.

Logo vários atiradores se identificaram, já pensando que, assim se mostrando, iriam se dar bem e ter uma “vidinha” mais amena durante o período de instrução, ficando como se diz “só na flauta”.

Na sequência o Sargento também solicitou que se identificassem aqueles que sabiam dirigir, depois os que tinham experiência com armas e finalmente os que sabiam cozinhar….

Com o mesmo pensamento, acho que todos aqueles “espertalhões de primeira hora” se identificaram logo com alguma daquelas habilidades, pensando praticamente a mesma coisa: “Vou pegar uma moleza e os outros caras que se ferrem”.

Porém, assim que o Sargento separou os quatro grupos: músicos, motoristas, cozinheiros e especialistas em armas ele gritou:

– Grupo dos Músicos! Vão já até a minha casa — (a casa do Sargento ficava ao lado da sede do TG), peguem o piano de caldas que está na sala e tragam ele aqui para a frente do salão. Depois levem ele de volta!
– Grupo dos Motoristas! Vão até a frente da sede, peguem os carrinhos de mão e carreguem os tijolos daquela pilha que está lá e tragam aqui para trás do terreno e em seguida devolvam a pilha de tijolos para o mesmo lugar!
– Grupo dos Cozinheiros! Vão até a cozinha e descasquem aqueles sacos de batatas e escolham também todo o feijão daquele saco de 60 quilos!
– Grupo das Armas! Vão até o paiol de armas e retirem para fora, todas as caixas de balas e projéteis! Limpem e escovem o chão até que ele fique brilhando e depois coloquem todas as caixas de volta, no mesmo lugar!
– E de hoje em diante aprendam a não querer dar uma de espertalhão!
– Aqui é o Exército! Aqui não tem moleza para ninguém!
– Deu moleza “Aqui é Barro!” (Expressão do exército que significa você se ferrou!)
E aprendam bem esta frase: “Não se joga espinhos na estrada, porque na volta é você que pode estar descalço!”

Me recordo de inúmeras passagens, durante as instruções, como eram chamadas as aulas que recebíamos. Muitas delas foram sobre a estrutura geral do exército, suas divisões, patentes dos oficiais e nomenclaturas.
Depois vieram as noções de estratégias, de pelotões em combate, de localização, sobrevivência e tantas outras, que nos deixavam sempre curiosos e interessados.

Era um mundo totalmente novo, para nós jovens imaturos de 18 anos. Na parte física, o regime era bem duro, com muita educação física, terríveis exercícios com fuzil, intermináveis treinamentos de ordem unida e ensaios da tradicional fanfarra, com aqueles lindos dobrões militares.

Hoje vejo o quanto faz falta aos nossos jovens, terem essa grande noção de patriotismo, de cidadania, para os estimularem a serem mais brasileiros, servindo o Exército. Pensando nisso me veio à mente uma frase do “rapper” americano ‘Tupac Shakur’: – As guerras vão e vêm, mas os soldados são eternos.

Um dos bons “causos” que tivemos, na época em que servimos, foi quando, numa das primeiras instruções, o Sargento começou a explicar as abreviações militares. No dia anterior, ele havia nos dado uma dica, que mais soava como um aviso ou premonição:
– Estudem bastante porque amanhã vai ter chamada oral, e se errarem, vão ter que tirar uma peça da farda, a cada erro!

O primeiro a ser chamado foi um colega, que vamos aqui dar o nome fictício de Atirador Stan e o seu número correspondente seria, também imaginariamente, digamos, o número 70.
Assim este nosso amigo era o “Stan – nº 70”
O Sargento então gritou:
– Número 70!
– Stan, Seu Sargento!
– O que quer dizer “RM” (*) Atirador Stan?
– Mato Grosso, Seu Sargento!
(*) RM é a abreviação de Região Militar e MT seria Mato Grosso, um dos estados da nossa federação.

Com o nível da resposta, logo na primeira pergunta, já deu para prever que o nosso amigo de farda, o Stan, não tinha estudado nada e ainda demostrava ter uma péssima memória.
Com isso o nosso Atirador 70, em questão de minutos, perdeu todas as suas roupas, com as respostas erradas e ficou peladão, na frente de todos os demais colegas!
Se não bastasse isso, na sequência, o Sargento ainda lhe deu um belo banho de mangueira, com água gelada e o deixou por 15 minutos em posição de sentido, ali na frente do pelotão, molhado e pelado!

Hoje talvez fosse considerada um castigo abusivo, mas na nossa época, isso tudo era considerado absolutamente normal.

Depois do peladão Stan e seu banho gelado, veio a frase do Sargento, que até hoje, ecoa na minha mente como mais uma lição aprendida:
– Ninguém pode reclamar dos resultados obtidos, daquilo que não fez!
Certa vez tivemos um outro caso, desta vez grave, ocorrido durante a noite, no período da “guarda” (*)
(*) período noturno que uma das “esquadras” composta por um cabo e três soldados, fazem a segurança da sede do TG.

Naquele dia eu era o cabo da esquadra e, portanto, estava no comando. Eu descansava em uma das camas na casa da guarda quando surgiu na porta um dos atiradores, vindo da guarita, pois acabava de ser rendido no seu turno, por outro colega.

Então, este atirador, que com certeza, tinha falta de algum parafuso na cabeça, resolveu testar o fuzil, arma que que cada um de nós usava, para a segurança do TG.

Ele queria saber se no pente de munição, tinha mesmo a quantidade de balas que havia sido informada pelo armeiro, que era o atirador responsável por municiar todos os fuzis. Assim, tão logo o nosso curioso amigo começou a brincar com o seu fuzil, expulsando as balas do pente, uma a uma.
Ele ia manejando o fuzil e brincava, olhando para todos, como que querendo se mostrar como sabichão para os demais:
– Lá vai uma bala!
E vimos a primeira bala ser expulsa do fuzil, caindo no chão….
– Lá vai a segunda bala!
Que, também caiu no chão….
– Lá vai a terceira……
– Olha aí agora, lá vai a quarta….
E assim por diante, foi sacando bala a bala, até que gritou:
– Olhem bem aqui, aqui está a quinta e última bala!…
E a quinta bala, que ele pensava, ser a última, caiu e rolou pelo chão….

Na sequência, o nosso curioso recruta, metido a esperto, assim que viu a tal quinta e “última bala”, ser expulsa do pente, apontou o fuzil para um dos companheiros, deitado em sua cama, e apertou o gatilho… dizendo em tom jocoso: – Agora chegou a tua hora seu “inimigo de merda” e “pá…pá!”

O que ele não esperava era que, aquela “pá…pá” de brincadeira, feito com a boca, acabou instantaneamente sendo coberto pelo estampido de um tiro real, que saiu do fuzil, sem que ninguém esperasse, e que por muita sorte passou entre as pernas do companheiro deitado.

O pânico foi geral, e ninguém sabia o que fazer, muito menos o coitado que estava na cama, que branco como cera, permaneceu imóvel, paralisado, sem conseguir sequer se mexer ou sair do lugar.
O nosso esperto atirador, tinha se esquecido que além das 5 balas existentes no pente do fuzil, havia sempre mais uma alojada na culatra….

Minutos depois surgiu correndo o Sargento, que espantado e empunhando sua arma automática “Colt 45” e gritava: – O que foi, o que foi? O que aconteceu? Mataram alguém? Quem atirou?

O nosso esperto atirador então, em total descontrole, tremendo nas pernas, que nem vara verde, caiu sentado, com o fuzil ainda na mão, sem saber o que lhe doía mais, se era o tranco do coice do fuzil no ombro, a bronca do Sargento ou o susto de quem quase matou um companheiro de armas, com a sua infeliz curiosidade.

Quando conseguimos fazer com ele se recuperasse e se levantasse, foi preciso arrumar uma outra calça, porque a sua, estava toda molhada, pelo xixi que ainda escorria pelas pernas… Felizmente, o nosso curioso atirador era ruim de mira.

Depois de todo aquele susto, explicações esfarrapadas dadas, só soubemos alguns dias depois que, o nosso atirador “sem parafuso”, tinha sido desligado do TG. Ele havia sido penalizado para prestar o resto do serviço, acrescido de mais um ano, em um quartel na divisa da Venezuela, no alto do Amazonas.

Acho que naquele dia todos tivemos sorte. Foi como aquele diretor de cinema que querendo fazer um ótimo filme, arruma um bom roteiro, une bons atores, mas se esquece, que às vezes não dá para controlar o figurante abelhudo, que resolve, numa cena, mudar sua fala e estragar o final feliz…
Mas uma das nossas melhores peripécias, nessa época de serviço militar, foi sem dúvidas quando estávamos ensaiando a fanfarra para o famoso desfile de 7 de setembro.

Me recordo que um dos atiradores, um amigo de infância, o Bia, tinha sido designado como “monitor” da fanfarra, ou seja, ele era o cara que seria como um maestro é para a sua orquestra. Era ele quem cuidava de ensaiar a nossa fanfarra do Tiro de Guerra.

Creio que pela sua competência, aos poucos ele foi conquistando a confiança do Sargento, que passou a deixá-lo comandar os ensaios, sem qualquer supervisão.

Em outras palavras, nosso grupo saía pelas ruas da cidade, ensaiando as marchas e dobrados militares e depois voltávamos para a sede do TG sem problemas, sob o comando unicamente do nosso maestro Bia e sem a supervisão do nosso Sargento. Até que……

Num daqueles ensaios diários, assim que paramos para um descanso, não sei dizer bem quem foi, mas alguém do grupo das caixas de repique, mais conhecidas como” tarolas”, mandou ver, um “toque de samba”, que eu instintivamente, acompanhei com o som do meu “surdo” (surdo é o nome daqueles tambores verticais).

Aí, não precisou falar mais nada para ninguém e como num passe de mágica a fanfarra do TG 02-047 se transformou instantaneamente numa verdadeira escola de samba, com coro, sambistas e tudo mais.

Estávamos na Av. Irmãs Cintra, bem em frente ao Instituto de Educação, e descemos pela rua lateral do Santuário, adentrando a Rua Sete de Setembro, sambando e cantando:

“Se você fosse sincera
Ô ô ô ô Aurora
Veja só que bom que era
Ô ô ô ô Aurora
Um lindo apartamento
Com porteiro e elevador
E ar refrigerado
Para os dias de calor….”

Na sequência, pegamos a Rua dos Andradas e entramos na Epitácio Pessoa, voltando no sentido da sede do TG, e emendamos outra marchinha:

“Você pensa que cachaça é água?
Cachaça não é água não
Cachaça vem do alambique
E água vem do ribeirão……
Pode me faltar o amor
E disto eu até acho graça
Só não quero que me falte
A danada da cachaça…”

O samba daquela “escola de samba militar” rolou solto por aquelas ruas vizinhas da sede do TG, acompanhada por enorme galera composta de adultos e crianças, todos bem chegados a um carnaval.
O barulho e a farra foram tão grandes que logo o nosso Sargento, escutou aquele som estranho de escola de samba, vindo da rua.
Acho que antevendo o grande desastre, o nosso Sargento correu como um louco em nossa direção, gritando e esbravejando, na frente da fanfarra, já nos dando uma enorme raspança!

Só sei que, como consequência direta, no dia seguinte às 5 h da manhã, lá estávamos todos os atiradores perfilados, em frente à nossa sede, a turma da fanfarra e os demais, sendo que nós da fanfarra, carregávamos, cada um o próprio instrumento.
O Sargento deu mais uma descompostura geral, falou tudo o que não queríamos ouvir e mais um pouco e deu a ordem de sentido, pedindo que os demais atiradores, que não pertenciam a fanfarra, saíssem da formação e fossem buscar a mangueira de água.

Aquela “velha mangueira” de água gelada, a mesma que deu o banho no nosso peladão Stan, quando demonstrou não saber nada de abreviações militares.

Recebemos todos então um belo banho de água gelada, por cima da farda, dos pés à cabeça, em formação de sentido, naquele frio intenso das 5 h da manhã!

Depois disso, o Sargento ordenou ao “grupo de sambistas” uma ordem unida em “acelerado”, ou seja, marchar correndo, carregando todos os instrumentos, num percurso de duas vezes, ida e volta pela Epitácio Pessoa, entre a sede e o Cine São Manuel. (*)

(*) Cabe lembrar que naquela época a sede do nosso TG era no final da Epitácio Pessoa, um pouco antes do “Grupinho”. Assim a distância, até o cinema eram aproximadamente uns 800 metros que vezes 4 dava um total de 3.200 metros.

Terminado o “castigo” com direito ao banho gelado e o acelerado, ainda molhados e com o corpo cheio de marcas e machucados, formados pelos instrumentos batendo nas pernas e ombros, ainda tivemos que enxugar e guardar todos os equipamentos e assistir normalmente a nossa instrução até o final do dia totalmente molhados.

Hoje, quando ouço uma daquelas marchinhas de carnaval que tocamos, até me dá arrepio, e me vem na mente essa passagem da nossa incorrigível “escola de samba militar” que nos marcou para sempre.

Acho que naquele dia, em que misturamos farra e irresponsabilidade, aprendemos a lição de que tínhamos abusado da confiança depositada em nós pelo Sargento. Assim, como se diz no próprio jargão militar:
“As lições aprendidas na dor jamais serão esquecidas, pois só a dor gera entendimentos e aprendizados”

Assim quando alguém me pergunta se o filho deve servir o exército, eu sempre digo: – Com certeza!
Hoje infelizmente esses valores estão cada vez mais perdidos e é muito comum os pais saírem à procura de um meio qualquer, para que o filho escape da convocação e não seja chamado a servir o Exército, o que é uma pena. Mal sabem eles que o Exército é uma grande e formidável escola, uma fantástica escola da vida!

Recentemente, li o discurso do condecorado Almirante americano “William McRavense”, herói americano na guerra do Afeganistão e chefe dos SEAL – Tropa de elite da Marinha Americana, para uma turma de formandos da sua Universidade nos USA, onde ele disse:
“Se você quer mudar o mundo comece arrumando a sua cama. Ela será a primeira tarefa do dia e apesar de simples, será a tarefa que o irá incentivar a fazer outras e mais outras, até completar o seu dia e todas aquelas tarefas que tinha que fazer. E se por acaso o seu dia for horrível, pelo menos, ao chegar em casa, a sua cama já estará arrumada!”

No Exército isso é uma das coisas que primeiro se aprende: cuidar das suas coisas, da sua farda, engraxar o seu coturno, arrumar a sua cama…
Pode parecer uma coisa boba, mas acho que fazer a cama também nos mostra que as coisas simples são importantes, porque ninguém consegue fazer direito as coisas grandes, se não aprender primeiro a fazer as coisas simples corretamente.

Foi o Tiro de Guerra que me ensinou como fazer as coisas simples acontecerem, como enfrentar as pequenas dificuldades, mesmo quando se tem poucos recursos, como naqueles dias de sobrevivência, em que só nos davam pão e água. Foi lá que aprendi o que é camaradagem, o que é compartilhar uma amizade, o que é estar junto e como é importante ajudar o companheiro.

Me lembro como se fosse hoje, dos treinamentos de trincheiras em que ficávamos enfiados em um grande buraco, de quase 3 metros de profundidade, e que para sair dali, só mesmo um ajudando o outro.

Recordo da primeira vez que entramos naquele buraco, e quando no primeiro momento, dado o sinal, pelo Sargento, cada um de nós pulou para dentro e depois cada um por si tentava sair dali sozinho, pisando um em cima do outro, sem ter qualquer sucesso.

Resultado, ninguém conseguiu sair e ficamos ali, todos no buraco, comendo poeira, sem quase conseguir respirar. Aí, depois de várias tentativas egoístas, o velho e sábio Sargento, na sua tosca linguagem gritou:
– Seu bando de idiotas! Ainda não entenderam que só vão conseguir sair daí de dentro quando aprenderem um a ajudar o outro?
Foi mais uma lição aprendida, a importância da amizade, da união e do companheirismo.

No caso da “escola de samba”, também aprendemos a solidariedade, pois ninguém “dedou” ninguém, sobre quem teria começado a bagunça.
Sofremos quietos, todos juntos a punição. Estávamos todos ali, unidos para aguentar o que tínhamos feito, assumindo nossas responsabilidades. Fomos solidários uns com os outros.

Foi no TG que aprendemos também que nada mais importa, quando se tem vontade de vencer e quando se tem um objetivo claro pela frente, quando se traça uma estratégia, quando se prepara para a luta.
Aí é lutar e lutar, é cair e levantar, é sair do buraco, da trincheira da vida, sempre de mãos dadas com o companheiro com quem se divide a jornada.
Nunca se abandona um companheiro!

Foi no TG que aprendemos sobre a dignidade, sobre o que é ter amor à Pátria, amor à nossa bandeira e a honrar o nosso país.
Foi no TG que aprendemos a respeitar a todos, não importando a sua origem, sua cor, sua raça, sua condição social, nem tampouco a sua religião.
Foi no TG, junto com os companheiros de farda, naquele período de serviço militar, que demos grandes passos para nos tornarmos uma pessoa melhor.
Foi no Exército que aprendemos como pequenos passos podem nos fazer alcançar grandes objetivos e assim não passar pelo mundo como mero espectador, mas como uma pessoa disposta e preparada para ajudar a mudar o mundo.

Porque também assim é a vida, sempre se aprende com os erros, com nossas limitações e o exército nos deu sempre esse “norte”, essas grandes lições. Com certeza o exército complementou a boa educação que tínhamos recebido dos nossos pais.

Depois de tantas recordações que passaram pela minha cabeça, percebo que ainda estou ali debruçado na janela da antiga sede do TG, em frente ao Grupinho, hoje “Escola Walter Carrer”, me vendo junto com todos aqueles meus colegas de farda da Turma de 1970, do TG 02-047.

O painel do carro acende a sua luz vermelha, me mostrando que estava na hora de partir dali. Entro rápido no carro e na sequência vem a luz amarela e a verde, até que o motor ruge forte e ele arranca para mais uma aventura no tempo e no espaço.

Ele entra voando pela velha estrada da Escola Agrícola e na altura do pontilhão da Sorocabana passa por baixo e decola de vez, contornando a famosa cachoeira da Agrícola.

Olho mais uma vez para trás e vejo a sede do TG, com a fanfarra perfilada para o início de mais um ensaio, visando o desfile de 7 de setembro e de longe ouço o som da música que está sendo ensaiada. É a “Canção do Exército”:

“Nós somos da Pátria a guarda
Fiéis soldados
Por ela amados
Nas cores de nossa farda
Rebrilha a glória
Fulge a vitória
……………………….
A paz queremos com fervor
A guerra só nos causa dor
Porém, se a Pátria amada
For um dia ultrajada
Lutaremos sem temor……”

O Ford, como que sentindo a letra daquele lindo hino, reduz a sua velocidade, estabiliza o voo e desliza suavemente, naquele início de noite de lua cheia, num sobrevoo sobre as águas da represa da Água Nova.

Um friozinho e umidade entra pela janela, eu me ajeito no velho banco do Ford 46, esse meu fantástico companheiro de viagens pelo tempo, fecho os olhos e tento imaginar para onde ele irá me levar….

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cabeca-ricchetti Ricchetti: Minha experiência no Tiro de Guerra - TG 02-047

Saímos das nuvens e começamos a descer até aterrissar bem em frente à Sede do Tiro de Guerra. O Ford havia me levado mais uma vez, para a minha querida São Manuel e o relógio do tempo no painel, apontava o ano de 1970.

Rapidamente desço e curioso olho pela janela da sua sede e vejo lá no fundo o nosso querido Sargento à frente de todos os atiradores, inclusive eu! Todos nós, impecáveis dentro de nossas fardas novas, bem passadas pelas orgulhosas mães. Todos nós garbosos, com os coturnos reluzentes, quepes tinindo na cabeça e cabelos cortados ao estilo militar.

227.1-TG-02-047 Ricchetti: Minha experiência no Tiro de Guerra - TG 02-047

Aquela visão fez com que eu começasse a recordar as boas coisas e os fantásticos dias que vivi naquele ano de 1970, como Atirador do TG 02-047.
Nessa época, ter os cabelos cortados à moda militar era uma situação bem inusitada, pois estávamos em pleno 1970, ano do centenário da cidade e apogeu da “beatlemania”. Ou seja, época em que a moda era usar os cabelos bem compridos, curtir o psicodélico, e do slogan “fazer amor e não fazer a guerra”.

Talvez, por saber de tudo isso, é que o nosso Sargento estava todo animado, naquela manhã, primeiro dia em que, nós, os novatos, iniciávamos o período de instrução militar. O Sargento logo começou a manhã com uma pequena introdução do que é o Exército Brasileiro e qual a função do Tiro de Guerra:
– O Exército tem como missão preservar e garantir a defesa da pátria, zelar pelo cumprimento pleno da constituição e pela manutenção da lei e da ordem. Em tempos de paz, uma das principais funções do Exército é defender as fronteiras brasileiras, garantindo a soberania nacional. O Tiro de Guerra (TG) é uma instituição militar do Exército Brasileiro encarregada de formar atiradores e cabos, os chamados “Reservistas do Exército”.

– A organização de um TG ocorre através de um acordo firmado entre os Municípios e o Comando da Região Militar, onde o Exército fornece os instrutores, fardamentos e equipamentos, enquanto o Município disponibiliza as instalações, daí a grande responsabilidade dos Prefeitos.”

E por aí foi a explanação do nosso Sargento, por pelo menos mais umas duas horas.

Todos ali, com muito sono e muitos sonhos, naquele primeiro dia, ouvindo uma explanação sobre o Exército, ao invés de pegar em armas e dar uns tiros, que acredito era a vontade da maioria de nós atiradores de primeira viagem.

Afinal, desde os nossos tempos de brincadeiras de “mocinho e bandido” acho que ficávamos imaginando o dia em que seguraríamos um fuzil de verdade e daríamos uns tiros, nem que fosse para o alto.
Terminada a explanação, o Sargento foi lendo uma longa lista com os números e os “Nomes de Guerra” (normalmente o nome de guerra é o sobrenome) de cada um de nós, os atiradores.

Esclareceu que daquele dia em diante, cada vez que ele gritasse o nosso número, deveríamos ficar em posição de sentido e gritar o “Nome de Guerra” e vice-versa, sempre seguidos de um “Sim Seu Sargento”.
Passados mais de 40 anos ainda não esqueço a primeira vez em que ouvi o meu número, gritado pelo nosso Sargento:
– Atirador 36
(Eu em posição de sentido, gritei)
– Silva! Seu Sargento!

São emoções como estas, do primeiro dia de TG, que ficam guardadas na nossa mente, no nosso coração, tão fixas como aquele pequeno pedaço de pano, que se coloca do lado esquerdo, acima do bolso, onde vem escrito o nosso nome de guerra, em tinta preta, para se destacar no fundo cor verde oliva da nossa farda.

Os nomes de guerra ficam bem presos, do lado esquerdo do peito, bem em cima do coração, talvez para nos lembrar do amor que devemos ter pelo nosso país, pelo nosso exército, pela nossa bandeira.
Após aquelas explicações sobre número e nome de guerra, o Sargento perguntou, se por acaso, alguém tocava algum instrumento.

Logo vários atiradores se identificaram, já pensando que, assim se mostrando, iriam se dar bem e ter uma “vidinha” mais amena durante o período de instrução, ficando como se diz “só na flauta”.

Na sequência o Sargento também solicitou que se identificassem aqueles que sabiam dirigir, depois os que tinham experiência com armas e finalmente os que sabiam cozinhar….

Com o mesmo pensamento, acho que todos aqueles “espertalhões de primeira hora” se identificaram logo com alguma daquelas habilidades, pensando praticamente a mesma coisa: “Vou pegar uma moleza e os outros caras que se ferrem”.

Porém, assim que o Sargento separou os quatro grupos: músicos, motoristas, cozinheiros e especialistas em armas ele gritou:

– Grupo dos Músicos! Vão já até a minha casa — (a casa do Sargento ficava ao lado da sede do TG), peguem o piano de caldas que está na sala e tragam ele aqui para a frente do salão. Depois levem ele de volta!
– Grupo dos Motoristas! Vão até a frente da sede, peguem os carrinhos de mão e carreguem os tijolos daquela pilha que está lá e tragam aqui para trás do terreno e em seguida devolvam a pilha de tijolos para o mesmo lugar!
– Grupo dos Cozinheiros! Vão até a cozinha e descasquem aqueles sacos de batatas e escolham também todo o feijão daquele saco de 60 quilos!
– Grupo das Armas! Vão até o paiol de armas e retirem para fora, todas as caixas de balas e projéteis! Limpem e escovem o chão até que ele fique brilhando e depois coloquem todas as caixas de volta, no mesmo lugar!
– E de hoje em diante aprendam a não querer dar uma de espertalhão!
– Aqui é o Exército! Aqui não tem moleza para ninguém!
– Deu moleza “Aqui é Barro!” (Expressão do exército que significa você se ferrou!)
E aprendam bem esta frase: “Não se joga espinhos na estrada, porque na volta é você que pode estar descalço!”

Me recordo de inúmeras passagens, durante as instruções, como eram chamadas as aulas que recebíamos. Muitas delas foram sobre a estrutura geral do exército, suas divisões, patentes dos oficiais e nomenclaturas.
Depois vieram as noções de estratégias, de pelotões em combate, de localização, sobrevivência e tantas outras, que nos deixavam sempre curiosos e interessados.

Era um mundo totalmente novo, para nós jovens imaturos de 18 anos. Na parte física, o regime era bem duro, com muita educação física, terríveis exercícios com fuzil, intermináveis treinamentos de ordem unida e ensaios da tradicional fanfarra, com aqueles lindos dobrões militares.

Hoje vejo o quanto faz falta aos nossos jovens, terem essa grande noção de patriotismo, de cidadania, para os estimularem a serem mais brasileiros, servindo o Exército. Pensando nisso me veio à mente uma frase do “rapper” americano ‘Tupac Shakur’: – As guerras vão e vêm, mas os soldados são eternos.

Um dos bons “causos” que tivemos, na época em que servimos, foi quando, numa das primeiras instruções, o Sargento começou a explicar as abreviações militares. No dia anterior, ele havia nos dado uma dica, que mais soava como um aviso ou premonição:
– Estudem bastante porque amanhã vai ter chamada oral, e se errarem, vão ter que tirar uma peça da farda, a cada erro!

O primeiro a ser chamado foi um colega, que vamos aqui dar o nome fictício de Atirador Stan e o seu número correspondente seria, também imaginariamente, digamos, o número 70.
Assim este nosso amigo era o “Stan – nº 70”
O Sargento então gritou:
– Número 70!
– Stan, Seu Sargento!
– O que quer dizer “RM” (*) Atirador Stan?
– Mato Grosso, Seu Sargento!
(*) RM é a abreviação de Região Militar e MT seria Mato Grosso, um dos estados da nossa federação.

Com o nível da resposta, logo na primeira pergunta, já deu para prever que o nosso amigo de farda, o Stan, não tinha estudado nada e ainda demostrava ter uma péssima memória.
Com isso o nosso Atirador 70, em questão de minutos, perdeu todas as suas roupas, com as respostas erradas e ficou peladão, na frente de todos os demais colegas!
Se não bastasse isso, na sequência, o Sargento ainda lhe deu um belo banho de mangueira, com água gelada e o deixou por 15 minutos em posição de sentido, ali na frente do pelotão, molhado e pelado!

Hoje talvez fosse considerada um castigo abusivo, mas na nossa época, isso tudo era considerado absolutamente normal.

Depois do peladão Stan e seu banho gelado, veio a frase do Sargento, que até hoje, ecoa na minha mente como mais uma lição aprendida:
– Ninguém pode reclamar dos resultados obtidos, daquilo que não fez!
Certa vez tivemos um outro caso, desta vez grave, ocorrido durante a noite, no período da “guarda” (*)
(*) período noturno que uma das “esquadras” composta por um cabo e três soldados, fazem a segurança da sede do TG.

Naquele dia eu era o cabo da esquadra e, portanto, estava no comando. Eu descansava em uma das camas na casa da guarda quando surgiu na porta um dos atiradores, vindo da guarita, pois acabava de ser rendido no seu turno, por outro colega.

Então, este atirador, que com certeza, tinha falta de algum parafuso na cabeça, resolveu testar o fuzil, arma que que cada um de nós usava, para a segurança do TG.

Ele queria saber se no pente de munição, tinha mesmo a quantidade de balas que havia sido informada pelo armeiro, que era o atirador responsável por municiar todos os fuzis. Assim, tão logo o nosso curioso amigo começou a brincar com o seu fuzil, expulsando as balas do pente, uma a uma.
Ele ia manejando o fuzil e brincava, olhando para todos, como que querendo se mostrar como sabichão para os demais:
– Lá vai uma bala!
E vimos a primeira bala ser expulsa do fuzil, caindo no chão….
– Lá vai a segunda bala!
Que, também caiu no chão….
– Lá vai a terceira……
– Olha aí agora, lá vai a quarta….
E assim por diante, foi sacando bala a bala, até que gritou:
– Olhem bem aqui, aqui está a quinta e última bala!…
E a quinta bala, que ele pensava, ser a última, caiu e rolou pelo chão….

Na sequência, o nosso curioso recruta, metido a esperto, assim que viu a tal quinta e “última bala”, ser expulsa do pente, apontou o fuzil para um dos companheiros, deitado em sua cama, e apertou o gatilho… dizendo em tom jocoso: – Agora chegou a tua hora seu “inimigo de merda” e “pá…pá!”

O que ele não esperava era que, aquela “pá…pá” de brincadeira, feito com a boca, acabou instantaneamente sendo coberto pelo estampido de um tiro real, que saiu do fuzil, sem que ninguém esperasse, e que por muita sorte passou entre as pernas do companheiro deitado.

O pânico foi geral, e ninguém sabia o que fazer, muito menos o coitado que estava na cama, que branco como cera, permaneceu imóvel, paralisado, sem conseguir sequer se mexer ou sair do lugar.
O nosso esperto atirador, tinha se esquecido que além das 5 balas existentes no pente do fuzil, havia sempre mais uma alojada na culatra….

Minutos depois surgiu correndo o Sargento, que espantado e empunhando sua arma automática “Colt 45” e gritava: – O que foi, o que foi? O que aconteceu? Mataram alguém? Quem atirou?

O nosso esperto atirador então, em total descontrole, tremendo nas pernas, que nem vara verde, caiu sentado, com o fuzil ainda na mão, sem saber o que lhe doía mais, se era o tranco do coice do fuzil no ombro, a bronca do Sargento ou o susto de quem quase matou um companheiro de armas, com a sua infeliz curiosidade.

Quando conseguimos fazer com ele se recuperasse e se levantasse, foi preciso arrumar uma outra calça, porque a sua, estava toda molhada, pelo xixi que ainda escorria pelas pernas… Felizmente, o nosso curioso atirador era ruim de mira.

Depois de todo aquele susto, explicações esfarrapadas dadas, só soubemos alguns dias depois que, o nosso atirador “sem parafuso”, tinha sido desligado do TG. Ele havia sido penalizado para prestar o resto do serviço, acrescido de mais um ano, em um quartel na divisa da Venezuela, no alto do Amazonas.

Acho que naquele dia todos tivemos sorte. Foi como aquele diretor de cinema que querendo fazer um ótimo filme, arruma um bom roteiro, une bons atores, mas se esquece, que às vezes não dá para controlar o figurante abelhudo, que resolve, numa cena, mudar sua fala e estragar o final feliz…
Mas uma das nossas melhores peripécias, nessa época de serviço militar, foi sem dúvidas quando estávamos ensaiando a fanfarra para o famoso desfile de 7 de setembro.

Me recordo que um dos atiradores, um amigo de infância, o Bia, tinha sido designado como “monitor” da fanfarra, ou seja, ele era o cara que seria como um maestro é para a sua orquestra. Era ele quem cuidava de ensaiar a nossa fanfarra do Tiro de Guerra.

Creio que pela sua competência, aos poucos ele foi conquistando a confiança do Sargento, que passou a deixá-lo comandar os ensaios, sem qualquer supervisão.

Em outras palavras, nosso grupo saía pelas ruas da cidade, ensaiando as marchas e dobrados militares e depois voltávamos para a sede do TG sem problemas, sob o comando unicamente do nosso maestro Bia e sem a supervisão do nosso Sargento. Até que……

Num daqueles ensaios diários, assim que paramos para um descanso, não sei dizer bem quem foi, mas alguém do grupo das caixas de repique, mais conhecidas como” tarolas”, mandou ver, um “toque de samba”, que eu instintivamente, acompanhei com o som do meu “surdo” (surdo é o nome daqueles tambores verticais).

Aí, não precisou falar mais nada para ninguém e como num passe de mágica a fanfarra do TG 02-047 se transformou instantaneamente numa verdadeira escola de samba, com coro, sambistas e tudo mais.

Estávamos na Av. Irmãs Cintra, bem em frente ao Instituto de Educação, e descemos pela rua lateral do Santuário, adentrando a Rua Sete de Setembro, sambando e cantando:

“Se você fosse sincera
Ô ô ô ô Aurora
Veja só que bom que era
Ô ô ô ô Aurora
Um lindo apartamento
Com porteiro e elevador
E ar refrigerado
Para os dias de calor….”

Na sequência, pegamos a Rua dos Andradas e entramos na Epitácio Pessoa, voltando no sentido da sede do TG, e emendamos outra marchinha:

“Você pensa que cachaça é água?
Cachaça não é água não
Cachaça vem do alambique
E água vem do ribeirão……
Pode me faltar o amor
E disto eu até acho graça
Só não quero que me falte
A danada da cachaça…”

O samba daquela “escola de samba militar” rolou solto por aquelas ruas vizinhas da sede do TG, acompanhada por enorme galera composta de adultos e crianças, todos bem chegados a um carnaval.
O barulho e a farra foram tão grandes que logo o nosso Sargento, escutou aquele som estranho de escola de samba, vindo da rua.
Acho que antevendo o grande desastre, o nosso Sargento correu como um louco em nossa direção, gritando e esbravejando, na frente da fanfarra, já nos dando uma enorme raspança!

Só sei que, como consequência direta, no dia seguinte às 5 h da manhã, lá estávamos todos os atiradores perfilados, em frente à nossa sede, a turma da fanfarra e os demais, sendo que nós da fanfarra, carregávamos, cada um o próprio instrumento.
O Sargento deu mais uma descompostura geral, falou tudo o que não queríamos ouvir e mais um pouco e deu a ordem de sentido, pedindo que os demais atiradores, que não pertenciam a fanfarra, saíssem da formação e fossem buscar a mangueira de água.

Aquela “velha mangueira” de água gelada, a mesma que deu o banho no nosso peladão Stan, quando demonstrou não saber nada de abreviações militares.

Recebemos todos então um belo banho de água gelada, por cima da farda, dos pés à cabeça, em formação de sentido, naquele frio intenso das 5 h da manhã!

Depois disso, o Sargento ordenou ao “grupo de sambistas” uma ordem unida em “acelerado”, ou seja, marchar correndo, carregando todos os instrumentos, num percurso de duas vezes, ida e volta pela Epitácio Pessoa, entre a sede e o Cine São Manuel. (*)

(*) Cabe lembrar que naquela época a sede do nosso TG era no final da Epitácio Pessoa, um pouco antes do “Grupinho”. Assim a distância, até o cinema eram aproximadamente uns 800 metros que vezes 4 dava um total de 3.200 metros.

Terminado o “castigo” com direito ao banho gelado e o acelerado, ainda molhados e com o corpo cheio de marcas e machucados, formados pelos instrumentos batendo nas pernas e ombros, ainda tivemos que enxugar e guardar todos os equipamentos e assistir normalmente a nossa instrução até o final do dia totalmente molhados.

Hoje, quando ouço uma daquelas marchinhas de carnaval que tocamos, até me dá arrepio, e me vem na mente essa passagem da nossa incorrigível “escola de samba militar” que nos marcou para sempre.

Acho que naquele dia, em que misturamos farra e irresponsabilidade, aprendemos a lição de que tínhamos abusado da confiança depositada em nós pelo Sargento. Assim, como se diz no próprio jargão militar:
“As lições aprendidas na dor jamais serão esquecidas, pois só a dor gera entendimentos e aprendizados”

Assim quando alguém me pergunta se o filho deve servir o exército, eu sempre digo: – Com certeza!
Hoje infelizmente esses valores estão cada vez mais perdidos e é muito comum os pais saírem à procura de um meio qualquer, para que o filho escape da convocação e não seja chamado a servir o Exército, o que é uma pena. Mal sabem eles que o Exército é uma grande e formidável escola, uma fantástica escola da vida!

Recentemente, li o discurso do condecorado Almirante americano “William McRavense”, herói americano na guerra do Afeganistão e chefe dos SEAL – Tropa de elite da Marinha Americana, para uma turma de formandos da sua Universidade nos USA, onde ele disse:
“Se você quer mudar o mundo comece arrumando a sua cama. Ela será a primeira tarefa do dia e apesar de simples, será a tarefa que o irá incentivar a fazer outras e mais outras, até completar o seu dia e todas aquelas tarefas que tinha que fazer. E se por acaso o seu dia for horrível, pelo menos, ao chegar em casa, a sua cama já estará arrumada!”

No Exército isso é uma das coisas que primeiro se aprende: cuidar das suas coisas, da sua farda, engraxar o seu coturno, arrumar a sua cama…
Pode parecer uma coisa boba, mas acho que fazer a cama também nos mostra que as coisas simples são importantes, porque ninguém consegue fazer direito as coisas grandes, se não aprender primeiro a fazer as coisas simples corretamente.

Foi o Tiro de Guerra que me ensinou como fazer as coisas simples acontecerem, como enfrentar as pequenas dificuldades, mesmo quando se tem poucos recursos, como naqueles dias de sobrevivência, em que só nos davam pão e água. Foi lá que aprendi o que é camaradagem, o que é compartilhar uma amizade, o que é estar junto e como é importante ajudar o companheiro.

Me lembro como se fosse hoje, dos treinamentos de trincheiras em que ficávamos enfiados em um grande buraco, de quase 3 metros de profundidade, e que para sair dali, só mesmo um ajudando o outro.

Recordo da primeira vez que entramos naquele buraco, e quando no primeiro momento, dado o sinal, pelo Sargento, cada um de nós pulou para dentro e depois cada um por si tentava sair dali sozinho, pisando um em cima do outro, sem ter qualquer sucesso.

Resultado, ninguém conseguiu sair e ficamos ali, todos no buraco, comendo poeira, sem quase conseguir respirar. Aí, depois de várias tentativas egoístas, o velho e sábio Sargento, na sua tosca linguagem gritou:
– Seu bando de idiotas! Ainda não entenderam que só vão conseguir sair daí de dentro quando aprenderem um a ajudar o outro?
Foi mais uma lição aprendida, a importância da amizade, da união e do companheirismo.

No caso da “escola de samba”, também aprendemos a solidariedade, pois ninguém “dedou” ninguém, sobre quem teria começado a bagunça.
Sofremos quietos, todos juntos a punição. Estávamos todos ali, unidos para aguentar o que tínhamos feito, assumindo nossas responsabilidades. Fomos solidários uns com os outros.

Foi no TG que aprendemos também que nada mais importa, quando se tem vontade de vencer e quando se tem um objetivo claro pela frente, quando se traça uma estratégia, quando se prepara para a luta.
Aí é lutar e lutar, é cair e levantar, é sair do buraco, da trincheira da vida, sempre de mãos dadas com o companheiro com quem se divide a jornada.
Nunca se abandona um companheiro!

Foi no TG que aprendemos sobre a dignidade, sobre o que é ter amor à Pátria, amor à nossa bandeira e a honrar o nosso país.
Foi no TG que aprendemos a respeitar a todos, não importando a sua origem, sua cor, sua raça, sua condição social, nem tampouco a sua religião.
Foi no TG, junto com os companheiros de farda, naquele período de serviço militar, que demos grandes passos para nos tornarmos uma pessoa melhor.
Foi no Exército que aprendemos como pequenos passos podem nos fazer alcançar grandes objetivos e assim não passar pelo mundo como mero espectador, mas como uma pessoa disposta e preparada para ajudar a mudar o mundo.

Porque também assim é a vida, sempre se aprende com os erros, com nossas limitações e o exército nos deu sempre esse “norte”, essas grandes lições. Com certeza o exército complementou a boa educação que tínhamos recebido dos nossos pais.

Depois de tantas recordações que passaram pela minha cabeça, percebo que ainda estou ali debruçado na janela da antiga sede do TG, em frente ao Grupinho, hoje “Escola Walter Carrer”, me vendo junto com todos aqueles meus colegas de farda da Turma de 1970, do TG 02-047.

O painel do carro acende a sua luz vermelha, me mostrando que estava na hora de partir dali. Entro rápido no carro e na sequência vem a luz amarela e a verde, até que o motor ruge forte e ele arranca para mais uma aventura no tempo e no espaço.

Ele entra voando pela velha estrada da Escola Agrícola e na altura do pontilhão da Sorocabana passa por baixo e decola de vez, contornando a famosa cachoeira da Agrícola.

Olho mais uma vez para trás e vejo a sede do TG, com a fanfarra perfilada para o início de mais um ensaio, visando o desfile de 7 de setembro e de longe ouço o som da música que está sendo ensaiada. É a “Canção do Exército”:

“Nós somos da Pátria a guarda
Fiéis soldados
Por ela amados
Nas cores de nossa farda
Rebrilha a glória
Fulge a vitória
……………………….
A paz queremos com fervor
A guerra só nos causa dor
Porém, se a Pátria amada
For um dia ultrajada
Lutaremos sem temor……”

O Ford, como que sentindo a letra daquele lindo hino, reduz a sua velocidade, estabiliza o voo e desliza suavemente, naquele início de noite de lua cheia, num sobrevoo sobre as águas da represa da Água Nova.

Um friozinho e umidade entra pela janela, eu me ajeito no velho banco do Ford 46, esse meu fantástico companheiro de viagens pelo tempo, fecho os olhos e tento imaginar para onde ele irá me levar….

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