CRÔNICA: MEU PRIMEIRO LIVRO – PAÇO A PASSO

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222.1-Angelo-Ricchetti-e-Filhos CRÔNICA: MEU PRIMEIRO LIVRO – PAÇO A PASSO

CAPÍTULO IV – TUTTI ORIUNDI – FAMÍLIA RICCHETTI 

O voo, desta vez, começou com muita turbulência, assim que saímos de São Carlos, logo depois daquele encontro com os amigos de infância. O carro voava rápido, com uma velocidade incrível, até que percebi, alguns minutos depois, que ele já começava a diminuir a velocidade e iniciar os procedimentos de aterrisagem.

Foi perdendo altura, diminuindo ainda mais a sua velocidade até aterrissar em frente ao que parecia ser uma casa comercial de grande movimento, sendo que à sua frente, se podia ver um prédio antigo e fantástico, que logo reconheci ser o Paço Municipal de São Manuel.

Puxa, estou na minha cidade natal novamente! Mas em que ano?

Noto que o prédio do Paço me parece extremamente novo, como nunca o tinha visto e que o Ford 1946, com seus frisos cromados, se destaca no meio de vários outros carros, todos na cor preta e muito mais antigos que o nosso Ford.

Então, vejo passar, reluzindo na minha frente um Ford Bigode, que reconheço ser um modelo 1908, ano de seu primeiro exemplar. Olho espantado para o painel e lá está marcado exatamente o ano de 1908! Puxa vida! Meus pais nem tinham nascido em 1908 e muito menos eu!

Olho novamente para aquela casa comercial e noto uma placa metálica, logo acima da fachada, com um nome estampado: “Casa Ricchetti”. Caramba! É a loja do meu bisavô Ângelo Ricchetti!

Olha para a entrada da loja, buscando mais algum detalhe e incrível, vejo que é meu bisavô que está lá! Ele mesmo! Bem em frente à loja, impecável, como sempre vi nas fotos da família, com o terno de casimira inglesa e as impagáveis polainas cinza, cobrindo os sapatos pretos de verniz!

A imagem do meu bisavô ali, em pé, em frente a tradicional loja da família, com o imponente e inseparável bigode, me emociona e me traz inúmeras lembranças, fazendo com que eu comece a refletir sobre o privilégio de ter tido origem em uma família de imigrantes italianos.

Ao longo da minha vida eu já tinha percebido que minhas maiores influências tinham vindo do lado italiano da família. Talvez porque convivi muito e mais, na infância e adolescência, com meu tio avô Hermínio, irmão de minha avó, que se tornou, posso dizer assim, meu padrinho cultural, pelo grande apreço que ele tinha pela leitura e pela história em geral, fazendo com que eu despertasse, muito cedo, o interesse pela literatura, pela cultura e pelas artes.

O lado italiano da minha família havia sido formado pela união das famílias D´Andrea e Ricchetti, ambas originárias do sul da Itália, da região de Puglia. Meus bisavôs, Ângelo e Maria Giovanna viriam a imigrar definitivamente para o Brasil, por volta do final do século XIX.

A primeira vez que meu bisavô veio ao Brasil foi com o objetivo de prospectar eventuais novas oportunidades, geradas pelo ápice da imigração italiana que se deu no período entre 1880 e 1930. Meu bisavô tinha grandes motivações políticas, já que era simpatizante de Giuseppe Garibaldi, e queria influenciar, com ideais republicanos e libertários, os italianos, que haviam imigrado para o Brasil.

Assim ele não veio da Itália como imigrante tradicional, para trabalhar nas lavouras no interior do Brasil, como a grande maioria dos italianos que aqui aportaram, mas sim como um representante da burguesia europeia, altamente politizada, que trazia consigo os fortes traços da cultura política, jornalística e musical da Europa, com o claro apego de propagá-la junto aos seus compatriotas italianos.

Sua primeira filha, minha avó, nasceu em São Bartolomeu in Galdo – Província de Benevento, no sul da Itália, em 1º de dezembro de 1894. Minha avó recebeu o nome de Linda Ricchetti e o fato curioso, é que este nome, lhe foi dado justamente porque no dia e hora em que seu pai, Ângelo Ricchetti recebia a notícia do seu nascimento, ele, que era maestro, regia uma orquestra, cuja ópera em questão se chamava “Linda di Chamonix”, de Gaetano Donizetti, célebre compositor italiano de óperas.

Sua vinda ao Brasil em definitivo se deu em 1896, quando desembarcou no porto de Santos já com sua esposa e a primeira filha, justamente a filha que viria a ser a minha avó Linda.

O porquê da escolha da cidade de São Manuel, não é conhecida, mas se supõe que foi aleatória. Porém é fato que a cidade era uma das cidades paulistas que tinham alta concentração de grandes latifúndios e consequentemente de muitos imigrantes italianos, que trabalhavam nas lavouras de café, o que atendia aos seus anseios de propagação da política libertária defendida por Garibaldi.

Posteriormente, além da minha avó Linda, que veio da Itália, meus bisavôs tiveram mais cinco filhos no Brasil: Fausto, Helena, Henrique, Hermínio e Uth. 

Aqui no Brasil, em São Manuel, meu bisavô fundou a Casa Ricchetti, que era uma grande loja, do tipo magazine. Pode-se dizer que, guardadas as devidas proporções do interior de São Paulo, era uma loja como foi o antigo e famoso Mappin na capital de São Paulo.

Ou seja, era uma casa comercial onde se encontrava toda sorte de produtos de magazine, tais como, materiais para escola, livros didáticos, científicos e literários, enorme variedade de papéis importados, lápis, borrachas e canetas tinteiro, presentes finos, cristais, quadros, artigos elétricos, fantasias, discos, brinquedos infantis etc.

Além da loja comercial também existia a parte industrial que consistia no primeiro parque gráfico da cidade, uma grande tipografia onde se imprimiam livros, notas e livros fiscais, convites e impressos em geral, realizava encadernações, além da redação, edição e impressão do jornal “O Movimento”, pois jornalista, que também era, meu bisavô fundou em dezembro de 1901, este jornal, que foi o primeiro de São Manuel a ter edições semanais.

Outro fato curioso, na história da família, é sobre a formação da banda de São Manuel onde meu bisavô, à época, importou da Itália, por sua conta e risco, todos os instrumentos necessários.

Quando a importação chegou ao porto de Santos e ele foi retirá-la, teve uma grande surpresa, todos os instrumentos haviam sido apreendidos, porque os fiscais da alfândega desconfiaram da enorme quantidade e variedade num só embarque e para uma só pessoa.

Meu bisavô então argumentou, junto aos fiscais, que como maestro estava criando uma banda em São Manuel e para poder provar a veracidade de tal fato, pegou um a um cada um dos instrumentos e começou a tocá-los na frente dos fiscais, entoando o hino nacional brasileiro.

Após essa demonstração, todos os instrumentos foram liberados e a Banda de São Manuel pôde, desde então, com o maestro Ricchetti a sua frente, fazer suas apresentações de valsas e músicas clássicas, no coreto do jardim municipal.

Meu bisavô, embora tivesse como grande aspiração a propagação de seus ideais republicanos, não teve a felicidade de poder ver essa sua influência vingar quando alguns dos seus filhos e netos brilharam na carreira política e na administração pública como Henrique, Fausto, Wilson, Walter, Sylvio Laís e Ângelo Lourival. 

Estava ali, ainda meio perdido com todas essas minhas lembranças de família, que acabei me esquecendo, mais uma vez do tempo. Logo vejo o painel do carro dar o bip de alerta e começar a piscar a luz vermelha, assinalando que meu tempo ali estava terminando.

Mas antes que eu deixasse a São Manuel de 1908, o rádio do carro, parece que como querendo prestar uma homenagem, começa a tocar uma música, que percebo, me é bem familiar.

Era a música que minha bisavó cantava sempre, junto com suas amigas italianas, cujo nome é “Merica, Merica”, uma música que os imigrantes italianos cantavam, durante a grande travessia de navio, e que se tornou praticamente o hino do imigrante italiano, que partia para a América:

Dalla Italia noi siamo partiti

Siamo partiti col nostro onore

Trentasei giorni di macchina e vapore

E nella Merica nois siamo arrivá

Merica, Merica, Merica

Cossa saràlo ´sta Merica?

Merica, Merica, Merica

Um bel mazzolino di fior

Sou tomado pela forte emoção e em silêncio, fecho os olhos e fico imaginando aqueles italianos todos, abandonando sua terra natal, suas famílias, abandonando praticamente tudo, em muitos casos, mulher e filhos, as tradições e partindo em busca de uma nova pátria, uma nova vida, em um lugar que os acolhesse e lhes desse trabalho para uma vida descente.

A música soa como uma grande homenagem a todos os italianos que ajudaram a construir este nosso país e serve também para nos lembrar da linda mistura de raças entre italianos e brasileiros.

Enquanto estou ali cantarolando o final da música, percebo que alguém bate com os nós dos dedos, na janela do carro. Meu Deus, era o meu próprio bisavô!

Eu então tremendo dos pés à cabeça, abro a porta e desço do carro…

Não sei como isso estava sendo possível, se era por uma identidade de almas ou se nós nos reconhecemos pelos laços e energias do coração.

O fato é que ele se aproximou e como se já soubesse quem eu era, sem me dizer nada, me deu um forte abraço e me beijou no rosto. Em seguida, segurando forte nos meus ombros, olhou fixamente nos olhos, e me disse:

– Caro nipote, dica tutti i miei discendenti che li amo tutti e vorrei che ricordassero sempre questo detto della nostra famiglia:

“Quando le radici sono profonde non c’è motivo di temere il vento.”

– Querido bisneto, diga a todos os meus descendentes que amo a todos e que gostaria que todos eles se lembrassem sempre deste ditado da nossa família:

“Quando as raízes são profundas não há razão para se temer o vento”.

Não consegui evitar que minhas lágrimas escorressem pelo rosto. Ele tentou também disfarçar e controlar as suas, assoprando o nariz com um lenço branco, que tirou rápido do bolsinho da lapela.

O painel soa então o alarme final, a luz amarela começa a piscar. Eu entro correndo no carro, a luz amarela se fixa, vem a luz verde… O motor do carro começa a roncar bem forte. O tempo ali, infelizmente, estava no fim…

Em seguida, o Ford sai em grande velocidade, desce a rua Gomes Faria, em direção a Estação Ferroviária, e já no topo da subida começa a alçar voo.

Só que ao invés de sumir, através das nuvens no alto da Estação, faz uma volta para dar um sobrevoo sobre toda a cidade, contornando em seguida, lentamente, a torre do relógio do Paço Municipal.

Assim que ele sobrevoa aquela linda torre, bem em frente à Casa Ricchetti, eu olho pela janela e num último olhar, consigo ainda ver meu bisavô, parado em frente à loja, como que paralisado, olhando para o nosso carro voador.

Aceno, pela janela, com minhas mãos trêmulas, ainda emocionado e antes que eu desapareça em alguma nova curva do tempo, consigo vê-lo retribuindo o meu aceno com seu lenço branco, gritando alto, para que eu pudesse ouvir o seu último conselho:

– “Ogni uomo non è sempre dove abita, ma dove ama”

– Todo homem está sempre, não onde ele mora, mas onde ele ama!

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CAPÍTULO IV – TUTTI ORIUNDI – FAMÍLIA RICCHETTI 

O voo, desta vez, começou com muita turbulência, assim que saímos de São Carlos, logo depois daquele encontro com os amigos de infância. O carro voava rápido, com uma velocidade incrível, até que percebi, alguns minutos depois, que ele já começava a diminuir a velocidade e iniciar os procedimentos de aterrisagem.

Foi perdendo altura, diminuindo ainda mais a sua velocidade até aterrissar em frente ao que parecia ser uma casa comercial de grande movimento, sendo que à sua frente, se podia ver um prédio antigo e fantástico, que logo reconheci ser o Paço Municipal de São Manuel.

Puxa, estou na minha cidade natal novamente! Mas em que ano?

Noto que o prédio do Paço me parece extremamente novo, como nunca o tinha visto e que o Ford 1946, com seus frisos cromados, se destaca no meio de vários outros carros, todos na cor preta e muito mais antigos que o nosso Ford.

Então, vejo passar, reluzindo na minha frente um Ford Bigode, que reconheço ser um modelo 1908, ano de seu primeiro exemplar. Olho espantado para o painel e lá está marcado exatamente o ano de 1908! Puxa vida! Meus pais nem tinham nascido em 1908 e muito menos eu!

Olho novamente para aquela casa comercial e noto uma placa metálica, logo acima da fachada, com um nome estampado: “Casa Ricchetti”. Caramba! É a loja do meu bisavô Ângelo Ricchetti!

Olha para a entrada da loja, buscando mais algum detalhe e incrível, vejo que é meu bisavô que está lá! Ele mesmo! Bem em frente à loja, impecável, como sempre vi nas fotos da família, com o terno de casimira inglesa e as impagáveis polainas cinza, cobrindo os sapatos pretos de verniz!

A imagem do meu bisavô ali, em pé, em frente a tradicional loja da família, com o imponente e inseparável bigode, me emociona e me traz inúmeras lembranças, fazendo com que eu comece a refletir sobre o privilégio de ter tido origem em uma família de imigrantes italianos.

Ao longo da minha vida eu já tinha percebido que minhas maiores influências tinham vindo do lado italiano da família. Talvez porque convivi muito e mais, na infância e adolescência, com meu tio avô Hermínio, irmão de minha avó, que se tornou, posso dizer assim, meu padrinho cultural, pelo grande apreço que ele tinha pela leitura e pela história em geral, fazendo com que eu despertasse, muito cedo, o interesse pela literatura, pela cultura e pelas artes.

O lado italiano da minha família havia sido formado pela união das famílias D´Andrea e Ricchetti, ambas originárias do sul da Itália, da região de Puglia. Meus bisavôs, Ângelo e Maria Giovanna viriam a imigrar definitivamente para o Brasil, por volta do final do século XIX.

A primeira vez que meu bisavô veio ao Brasil foi com o objetivo de prospectar eventuais novas oportunidades, geradas pelo ápice da imigração italiana que se deu no período entre 1880 e 1930. Meu bisavô tinha grandes motivações políticas, já que era simpatizante de Giuseppe Garibaldi, e queria influenciar, com ideais republicanos e libertários, os italianos, que haviam imigrado para o Brasil.

Assim ele não veio da Itália como imigrante tradicional, para trabalhar nas lavouras no interior do Brasil, como a grande maioria dos italianos que aqui aportaram, mas sim como um representante da burguesia europeia, altamente politizada, que trazia consigo os fortes traços da cultura política, jornalística e musical da Europa, com o claro apego de propagá-la junto aos seus compatriotas italianos.

Sua primeira filha, minha avó, nasceu em São Bartolomeu in Galdo – Província de Benevento, no sul da Itália, em 1º de dezembro de 1894. Minha avó recebeu o nome de Linda Ricchetti e o fato curioso, é que este nome, lhe foi dado justamente porque no dia e hora em que seu pai, Ângelo Ricchetti recebia a notícia do seu nascimento, ele, que era maestro, regia uma orquestra, cuja ópera em questão se chamava “Linda di Chamonix”, de Gaetano Donizetti, célebre compositor italiano de óperas.

Sua vinda ao Brasil em definitivo se deu em 1896, quando desembarcou no porto de Santos já com sua esposa e a primeira filha, justamente a filha que viria a ser a minha avó Linda.

O porquê da escolha da cidade de São Manuel, não é conhecida, mas se supõe que foi aleatória. Porém é fato que a cidade era uma das cidades paulistas que tinham alta concentração de grandes latifúndios e consequentemente de muitos imigrantes italianos, que trabalhavam nas lavouras de café, o que atendia aos seus anseios de propagação da política libertária defendida por Garibaldi.

Posteriormente, além da minha avó Linda, que veio da Itália, meus bisavôs tiveram mais cinco filhos no Brasil: Fausto, Helena, Henrique, Hermínio e Uth. 

Aqui no Brasil, em São Manuel, meu bisavô fundou a Casa Ricchetti, que era uma grande loja, do tipo magazine. Pode-se dizer que, guardadas as devidas proporções do interior de São Paulo, era uma loja como foi o antigo e famoso Mappin na capital de São Paulo.

Ou seja, era uma casa comercial onde se encontrava toda sorte de produtos de magazine, tais como, materiais para escola, livros didáticos, científicos e literários, enorme variedade de papéis importados, lápis, borrachas e canetas tinteiro, presentes finos, cristais, quadros, artigos elétricos, fantasias, discos, brinquedos infantis etc.

Além da loja comercial também existia a parte industrial que consistia no primeiro parque gráfico da cidade, uma grande tipografia onde se imprimiam livros, notas e livros fiscais, convites e impressos em geral, realizava encadernações, além da redação, edição e impressão do jornal “O Movimento”, pois jornalista, que também era, meu bisavô fundou em dezembro de 1901, este jornal, que foi o primeiro de São Manuel a ter edições semanais.

Outro fato curioso, na história da família, é sobre a formação da banda de São Manuel onde meu bisavô, à época, importou da Itália, por sua conta e risco, todos os instrumentos necessários.

Quando a importação chegou ao porto de Santos e ele foi retirá-la, teve uma grande surpresa, todos os instrumentos haviam sido apreendidos, porque os fiscais da alfândega desconfiaram da enorme quantidade e variedade num só embarque e para uma só pessoa.

Meu bisavô então argumentou, junto aos fiscais, que como maestro estava criando uma banda em São Manuel e para poder provar a veracidade de tal fato, pegou um a um cada um dos instrumentos e começou a tocá-los na frente dos fiscais, entoando o hino nacional brasileiro.

Após essa demonstração, todos os instrumentos foram liberados e a Banda de São Manuel pôde, desde então, com o maestro Ricchetti a sua frente, fazer suas apresentações de valsas e músicas clássicas, no coreto do jardim municipal.

Meu bisavô, embora tivesse como grande aspiração a propagação de seus ideais republicanos, não teve a felicidade de poder ver essa sua influência vingar quando alguns dos seus filhos e netos brilharam na carreira política e na administração pública como Henrique, Fausto, Wilson, Walter, Sylvio Laís e Ângelo Lourival. 

Estava ali, ainda meio perdido com todas essas minhas lembranças de família, que acabei me esquecendo, mais uma vez do tempo. Logo vejo o painel do carro dar o bip de alerta e começar a piscar a luz vermelha, assinalando que meu tempo ali estava terminando.

Mas antes que eu deixasse a São Manuel de 1908, o rádio do carro, parece que como querendo prestar uma homenagem, começa a tocar uma música, que percebo, me é bem familiar.

Era a música que minha bisavó cantava sempre, junto com suas amigas italianas, cujo nome é “Merica, Merica”, uma música que os imigrantes italianos cantavam, durante a grande travessia de navio, e que se tornou praticamente o hino do imigrante italiano, que partia para a América:

Dalla Italia noi siamo partiti

Siamo partiti col nostro onore

Trentasei giorni di macchina e vapore

E nella Merica nois siamo arrivá

Merica, Merica, Merica

Cossa saràlo ´sta Merica?

Merica, Merica, Merica

Um bel mazzolino di fior

Sou tomado pela forte emoção e em silêncio, fecho os olhos e fico imaginando aqueles italianos todos, abandonando sua terra natal, suas famílias, abandonando praticamente tudo, em muitos casos, mulher e filhos, as tradições e partindo em busca de uma nova pátria, uma nova vida, em um lugar que os acolhesse e lhes desse trabalho para uma vida descente.

A música soa como uma grande homenagem a todos os italianos que ajudaram a construir este nosso país e serve também para nos lembrar da linda mistura de raças entre italianos e brasileiros.

Enquanto estou ali cantarolando o final da música, percebo que alguém bate com os nós dos dedos, na janela do carro. Meu Deus, era o meu próprio bisavô!

Eu então tremendo dos pés à cabeça, abro a porta e desço do carro…

Não sei como isso estava sendo possível, se era por uma identidade de almas ou se nós nos reconhecemos pelos laços e energias do coração.

O fato é que ele se aproximou e como se já soubesse quem eu era, sem me dizer nada, me deu um forte abraço e me beijou no rosto. Em seguida, segurando forte nos meus ombros, olhou fixamente nos olhos, e me disse:

– Caro nipote, dica tutti i miei discendenti che li amo tutti e vorrei che ricordassero sempre questo detto della nostra famiglia:

“Quando le radici sono profonde non c’è motivo di temere il vento.”

– Querido bisneto, diga a todos os meus descendentes que amo a todos e que gostaria que todos eles se lembrassem sempre deste ditado da nossa família:

“Quando as raízes são profundas não há razão para se temer o vento”.

Não consegui evitar que minhas lágrimas escorressem pelo rosto. Ele tentou também disfarçar e controlar as suas, assoprando o nariz com um lenço branco, que tirou rápido do bolsinho da lapela.

O painel soa então o alarme final, a luz amarela começa a piscar. Eu entro correndo no carro, a luz amarela se fixa, vem a luz verde… O motor do carro começa a roncar bem forte. O tempo ali, infelizmente, estava no fim…

Em seguida, o Ford sai em grande velocidade, desce a rua Gomes Faria, em direção a Estação Ferroviária, e já no topo da subida começa a alçar voo.

Só que ao invés de sumir, através das nuvens no alto da Estação, faz uma volta para dar um sobrevoo sobre toda a cidade, contornando em seguida, lentamente, a torre do relógio do Paço Municipal.

Assim que ele sobrevoa aquela linda torre, bem em frente à Casa Ricchetti, eu olho pela janela e num último olhar, consigo ainda ver meu bisavô, parado em frente à loja, como que paralisado, olhando para o nosso carro voador.

Aceno, pela janela, com minhas mãos trêmulas, ainda emocionado e antes que eu desapareça em alguma nova curva do tempo, consigo vê-lo retribuindo o meu aceno com seu lenço branco, gritando alto, para que eu pudesse ouvir o seu último conselho:

– “Ogni uomo non è sempre dove abita, ma dove ama”

– Todo homem está sempre, não onde ele mora, mas onde ele ama!

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