Meu pai sempre me contou sobre várias histórias da sua adolescência em São Manuel, nossa cidade natal. Uma delas, bem peculiar, teria ocorrido lá pelos idos de 1942 em um reservado de um bar, localizado no centro da cidade.
O Bar Central era um daqueles bares antigos, com um enorme balcão todo de mármore, branco tendo numa das extremidades aquelas bombonieres giratórias de vidro com vários compartimentos onde se colocavam vários tipos de balas entre elas a pipper, a toffee e a bala chita.
Do outro lado do balcão ficavam os compartimentos aquecidos com portas de vidro que conservavam os torresmos, os ovos cozidos coloridos, o escabeche de sardinha, a linguiça frita, o chouriço e os pasteis. Na frente do balcão ficavam alguns bancos com pé único de ferro chumbado no chão e assentos de madeira.
Na parte debaixo do balcão se localizava o refrigerador onde se guardavam as bebidas cuja parte frontal era toda de vidro transparente de modo que os clientes podiam ver as bebidas geladas, principalmente a cerveja Brahma feita em Agudos, que todos diziam ser a melhor da região.
Para aqueles que não sabem o que é o reservado de um bar, lembro que antigamente, todo bar ‘fino’ que se prezasse, tinha que ter, além do balcão da frente, uma pequena sala ou salão, normalmente separado por uma portinha tipo ‘vai e vem’, dessas que se via em filmes de faroeste, onde grupos de pessoas, casais de namorado e até famílias inteiras podiam se reunir sem o inconveniente de frequentar o mesmo balcão onde não havia nenhuma privacidade e onde, além do mais, se postavam os bebuns da cidade. As mesas do reservado do Bar Central eram de madeira, pintadas de branco com um tampo de ‘Granilite’ na cor cinza e preto, completado com as cadeiras de madeira da marca ‘Cimo’, muito utilizadas, no período, em casas comerciais, principalmente em bares.
Os reservados eram bem típicos em bares do interior e mesmo na capital porque, nessa época, não era muito comum termos muitos restaurantes e lanchonetes como nos dias de hoje e a única alternativa, para encontros, reuniões, lanches e jantares eram os reservados dos bares de uma cidade.
Assim, toda sexta-feira meu pai e seus amigos adolescentes se reuniam no reservado do Bar Central, para beber e jogar conversa fora lembrando que também nesse período os donos de bares não se atentavam para o aspecto da maioridade e os jovens eram servidos de bebidas alcoólicas sem cerimônia. Para quem conheceu ou conhece a minha cidade São Manuel esse bar ficava na esquina do Jardim público, na confluência das ruas Epitácio Pessoa e a Gomes Faria, do lado contrário a outro bar que também foi famoso nos anos 60/70, o Bar Colonial.
Assim, sempre, na última sexta-feira do mês, eles costumavam arrumar alguma coisa para que o dono do bar cozinhasse para eles. Era sempre algum tipo de carne ou pescado, frango ou peru, cupim ou costela, um peixe etc. para que ele, cozinheiro de mão cheia, exercesse sua habilidade na cozinha.
Normalmente essas tais ‘iguarias’ eram obtidas de um modo não convencional, ou melhor dizendo, adolescentes moleques e irresponsáveis que eram ele sempre davam um jeito de surrupiá-las de alguém desavisado, morador da cidade ou da região…
O inocente dono do bar, que nunca imaginou de onde vinham os produtos, fazia o jantar com gosto porque além de ser um hobby, ele acreditava que era uma boa maneira de manter aqueles garotos longe de alguma encrenca, até porque seu filho de dezesseis anos, também fazia parte daquela turma.
Numa desses encontros das sextas-feiras, lá pelo começo do mês de novembro, um deles, cujo pai era açougueiro, comentou que tinha conhecimento que um sujeito tinha comprado um leitãozinho e o estava engordando para o Natal no fundo do seu quintal (era comum entre as muitas famílias do interior fazer isso durante o ano para ter sua própria leitoa para servir no almoço da família). O rapaz tinha ouvido o pai comentar que o tal senhor chamado Manoel o havia procurado no açougue para saber se poderiam matar e limpar a leitoa para ele e sua família quando chegasse o Natal.
Mal o rapaz terminou de dar a notícia ao grupo eles todos se entreolharam e já pensando no óbvio, gritaram quase que em uníssono: – Aheee!!! Já temos o que comer no jantar do mês!!!
Em poucos minutos lá estavam eles bolando os planos e estratégias para descobrir quem era o Manoel, dono da leitoa, onde ele morava, como pegá-la, como limpar a leitoa, os ingredientes necessários para assá-la, etc.
Na semana seguinte, o grupo, no mesmo reservado, já sabia quem era o tal de Manoel que iria ‘perder’ a leitoa, bem como tinham já preparado toda a estratégia e combinado tudo para que o dono do bar recebesse a tempo o tal leitãozinho para assar no tradicional jantar da última sexta-feira do mês. Uma das coisas acertadas entre eles era que o filho do dono do açougue ficaria encarregado de matar e limpar a leitoa assim que a recebesse dos demais do grupo que iriam pegá-la do seu Manoel, o doador involuntário.
A única preocupação de todos eles, e talvez o ponto fraco do plano, era de que o Seu Manoel era um velho habitue daquele bar e amicíssimo do dono e assim, por muitas vezes, conhecendo de muito tempo o hábito daquele grupo de adolescentes, ele costumava invadir o reservado para ‘filar boia’ como se dizia, pegando sempre algum pedaço do quitute preparado para eles naquela noite. A preocupação de todos era de que o Seu Manoel, dando falta da leitoa, e conhecendo o modo como o grupo sempre obtinha suas iguarias para os jantares, desconfiasse logo deles e fosse ao bar exatamente para conferir se o prato principal não estava sendo fornecido por ele mesmo…
Uma coisa que aquele grupo de adolescentes não sabia, era que o Seu Manoel, muito esperto e grande conhecedor daquela turma de adolescentes e do que costumavam fazer, tinha resolvido cortar o rabo da leitoa, para que caso eles a roubassem, ele facilmente, poderia ir até o bar e identificar in loco a sua leitoa pela falta do rabo.
Bem, o tempo correu e a última sexta feira do mês chegou. O grupo deu início ao seu plano de ‘emprestar’ a leitoa do velho Seu Manoel e tudo ocorreu perfeitamente bem e a leitoa surrupiada, foi morta e limpa pelo filho do açougueiro e entregue ao dono do bar para o preparo.
Naquela noite todos, alegres e satisfeitos foram ao reservado para saborear, talvez desta vez com maior satisfação, a leitoa do Seu Manoel, habitue do bar. Este por sua vez já sabendo do sumiço da sua leitoa, como previsto, logo desconfiou deles e também se postou por perto escondido, para dar um flagra, junto com o delegado que tinha chamado, à aquela turminha que chamou de ‘ladrõezinhos da leitoa sem rabo’.
Assim que o cozinheiro colocou a leitoa na mesa, o Seu Manoel, acompanhado do delegado e dois soldados, entrou bufando no reservado e foi logo gritando:
– Haha.. seus malandros, peguei todos vocês, essa leitoa é minha e já disse aqui ao delegado que a prova cabal é que tirei o rabo dela já prevendo que vocês a pudessem roubar!
– Veja aqui seu delegado, aposto que a leitoa que está aqui não tem o rabo!
E dizendo isso, tirou de cima o papel alumínio que a cobria, apontando para a traseira da leitoa, para mostrar que não tinha o rabo e, portanto, era a dele que tinha sido roubada…
Para surpresa de todos e mais ainda do grupo de adolescentes que já temiam ter sido descobertos e presos, ao olharem a leitoa, viram espantados um enorme rabo retorcido a adornar a sua traseira!
Com ‘cara de taxo’ ao dono da leitoa, só restou engolir em seco e aceitar o convite do grupo de rapazes para se sentar, junto com o delegado e seus dois soldados para saborear aquela deliciosa leitoa assada em forno de lenha, com a pele pururuca, e tendo apontado para cima um belo e enorme rabo…
O grande mistério só ficou esclarecido, na semana seguinte, quando o grupo reunido mais uma vez no reservado, ouviu o filho do açougueiro, contar a todos que ao limpar a leitoa e vendo que ela não tinha rabo, decidiu pegar o rabo de uma outra do açougue do pai e costurar naquela para que ela não parecesse uma leitoa mutilada!!!
Naquela mesma noite o dono da leitoa, tomando uma cerveja gelada encostado no balcão do bar comentou com seu amigo do outro lado do balcão:
– Não sei que tanto riem e gargalham esses rapazes….
José Luiz Ricchetti – 27/08/2023