É feriado de Corpus Christi, festa católica que tem por objetivo celebrar o mistério da eucaristia, o sacramento do corpo e do sangue de Jesus Cristo.
Estou na casa do meu irmão em São Manuel, minha cidade natal, onde esta festa tradicional e centenária, tem o costume de enfeitar as ruas para a passagem do corpo de cristo, daí o nome Corpus Christi.
São quatro horas da manhã do sábado quando ouço a campainha tocar de modo insistente. Está muito frio e chovendo.
Assustado, me levanto, já pensando no pior…
Seria um parente que faleceu? Algum vizinho precisando de ajuda?
Abro a porta da casa e olho para fora.
Ouço gemidos na frente do portão da garagem e vejo um vulto, todo de preto, sentado, em frente, no chão da calçada.
Parece ter uns quarenta anos. Ele geme e diz estar com fome e frio e que vai morrer… Ele parece estar bêbado ou drogado….
Naquele momento o meu lado místico fala mais alto e começo a comparar o rosto sofrido que vejo nas sombras, de cabelos desgrenhados, com o do Cristo, tão bem representado em alguns desenhos de tapetes que enfeitaram as ruas, na quinta-feira.
Então começa uma disputa interna entre o meu lado ingênuo, de quem nasceu e cresceu no interior, sem maldade, com o meu lado paulistano, de quem já se tornou meio insensível, devido as inúmeras mazelas diárias que vivencia…
O resto da família acorda com os gritos e lamentos do rapaz.
Resolvemos preparar um saco com lanches e frutas para aquele sofredor…
Só temos pão sem glúten, mas preparamos os lanches com esse pão mesmo…
Ele continua dizendo que está com frio e que vai morrer…
Juntamos ao lanche um cobertor para abrigá-lo do frio.
Levo até ele a matula preparada e o cobertor, mas percebo sua dificuldade em esticar o braço para pegá-la… Estaria ele ferido?
Com dificuldade estico o braço pelas grades e tento colocar o lanche em suas mãos.
Ele volta a repetir que está com frio e pede para entrar e se abrigar na garagem.
Novamente meus dois lados começam a se conflitar internamente…
Seria alguém precisando de ajuda ou uma pessoa mal-intencionada?
Continua a minha briga interna…
Meu irmão decide ligar para a polícia e relatar o fato, pedindo ajuda…
Volto a acalmar o rapaz, que continua se queixando de frio, fome, dizendo que vai morrer….
Através da grade, o ajudo a se agasalhar com o cobertor…
Nesse momento, vejo ao seu lado algo que parece ser uma blusa e lhe digo:
– Por que não coloca a sua blusa?
Ele me ignora, puxa o embrulho para perto de si e continua se queixando e pedindo para entrar e dormir na garagem.
Começa a chuviscar mais forte!
Ele está todo molhado…
Percebo que o que parecia ser uma blusa, era na verdade uma bolsa grande…
Meu lado desconfiado se pergunta:
– Como ainda carrega uma bolsa alguém que não para em pé?
– Quem, nessa situação, carrega uma bolsa grande dessas?
Vejo que a bolsa está entreaberta e tem algo dentro…
Olho com mais atenção e vejo algo metálico…Seria uma faca?
Meu irmão me chama pela janela e diz que já avisou a polícia….
Quando volto meus olhos novamente para o rapaz. percebo que ele sumiu!
Subo na grade e olhando a rua, ainda consigo ver o vulto dele, correndo na chuva!
Acho que ‘pão sem glúten’ faz milagres….
José Luiz Ricchetti – 18/06/2022