Era o começo de mais uma madrugada na UTI, quando senti no peito, bem do lado esquerdo, aquela dor fulminante.
Imediatamente vieram os médicos e enfermeiros, assim que ouviram o bip de alerta do respirador e dos aparelhos de monitoramento.
Fizeram o possível e o impossível, ao alcance da medicina, mas tinha chegado a minha hora.
O Covid, a doença do momento, tinha vencido mais uma batalha e aquele dia, que apenas começava, se apresentava como o meu último.
Percebi claramente isso, assim que senti aquela dor no peito.
Antes de partir para a nova morada, meus pensamentos percorreram, numa fração de segundos, toda aquela minha vida.
Meus erros e meus acertos…
Como se estivesse lendo meu próprio curriculum, percorri toda a carreira profissional, desde o momento em que me formei em engenharia e consegui o primeiro estágio até a última e recente promoção, como CEO de uma grande multinacional.
Logo percebi que apesar de todo o reconhecimento e sucesso, tudo iria desaparecer em segundos, como a areia fina que escorre pela ampulheta.
Toda aquela importância que eu achava que tinha se esvaiu. Com certeza logo a empresa irá nomear o meu substituto…pensei.
Percebo que tudo vai ficar aqui…
Os novos projetos, as decisões sobre a nova fábrica, que tomaria no dia seguinte, na reunião da diretoria, o livro de memórias que tinha começado a escrever, a Mercedes blindada, as aplicações nos bancos, a casa de praia, o veleiro, meu pastor alemão, minhas garrafas de whisky envelhecido, meus vinhos, meus livros, a viagem de férias que tinha programado, o tênis dos finais de semana, minha família, meus amigos…
Tudo, absolutamente tudo, vai ficar aqui. Fica claro agora que só levarei o que fiz de bom e ficou impregnado no meu espírito!
O que tinha por fazer, os bens materiais, os projetos, vão todos ficar estagnados ou inacabados….
Vejo o quanto foram desnecessárias e prejudiciais, no meu relacionamento com minha cara metade, as brigas, grosserias, impaciências, infidelidades… Todas essas coisas pequenas, do dia a dia, que apenas serviram para me afastar de quem sempre me proporcionou amor, dedicação e felicidade.
Não houve tempo de pedir perdão…
Lembro também que não irei mais estar no casamento da neta mais velha, marcado para o final do ano e nem verei o netinho recém-nascido…
Não abraçarei mais meus filhos, nem direi que os amo e que sempre os amei, apesar das minhas ausências constantes, em função das viagens e das intermináveis reuniões diárias.
Eles cresceram, saíram de casa, se casaram, tiveram filhos e eu nem notei, simplesmente não vi o tempo passar…
Percebo, com clareza agora, que o mundo vai continuar sem mim, esse mesmo mundo louco, frenético e caótico….
Minha ausência, não irá fazer a mínima diferença.
Logo serei substituído em tudo.
Incrível! Como pude ser tão arrogante e metido a besta!
Para que me serviu este orgulho bobo?
A areia da minha ampulheta, devia ser muito mais fina.
Minha vida escorreu pelas mãos, como a água da fonte.
Num estalar de dedos, minha vida se foi, os anos voaram!
Pois é… A vida é assim. Piscou…Vupt! Ela se vai!
Puxa vida, como eu gostaria de:
Ter amado mais!
Ter perdoado mais!
Ter me doado mais!
Ter abraçado mais!
Ter sorrido mais!
Ter dito “Eu te amo”, muito e muitas vezes mais!
Agora percebo que já estou fora do meu próprio corpo…
Vejo o enfermeiro ao meu lado. Ele desliga os aparelhos, sondas e tubos, me coloca numa maca, me cobre com um lençol e começa a me levar pelos corredores do hospital…
Antes de entrar com a maca no elevador ele passa em frente ao hall das enfermeiras e posso ver o relógio na parede, quase completando a vigésima quinta hora…
A maca com meu corpo físico entra no elevador e o enfermeiro aperta o botão do subsolo.
Mas noto, ali no mesmo elevador, muitas outras pessoas, todas sorrindo para mim.
Vêm ao meu encontro e então reconheço um a um, todos os meus parentes e amigos, que eu sabia, tinham partido para a outra dimensão. Alguns há muito e muito tempo…
Eles ignoram aquele meu corpo físico estendido na maca e envolvem meu espírito com um cobertor quentinho, cheio de amor…. Reconheço todos, meus pais, meus avós, meus tios, meus amigos… Que emoção!
Eles me abraçam, me pegam pela mão e vejo um deles apertar um outro botão do elevador… Desta vez consigo ver que no botão está escrito uma palavra, bem pequenina: ‘Céu’….
Sinto uma sensação de conforto e paz e antes que meu corpo físico desça com o enfermeiro e meu espírito suba com eles, consigo ver o ponteiro do relógio, no braço do enfermeiro, completar a vigésima quinta hora…
E antes da definitiva separação corpo-espírito ainda dá tempo de ouvir o enfermeiro cantarolar uma canção do Lulu Santos:
“Hoje o tempo voa, amor
Escorre pelas mãos
Mesmo sem se sentir
Não há tempo que volte, amor
Vamos viver tudo que há pra viver
Vamos nos permitir…”
José Luiz Ricchetti – 06/07/2021