Tinha recém me mudado para o interior de São Paulo, era o sábado de carnaval e eu tinha terminado o meu churrasco, algumas caipirinhas a mais e muita preguiça, então me deitei na rede….
O sol ainda se fazia presente, naquela tarde de verão, e sua luz intensa refletia na piscina. Liguei o Spotify do meu celular, selecionei algumas marchinhas de carnaval de forma aleatória e antes que o sono me roubasse a cena, comecei a ouvir aquele incrível sucesso do Zé Kéti de 1967:
“Máscara Negra”:
Quanto riso, oh, quanta alegria!
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando
Pelo amor da Colombina
No meio da multidão…….
Veio o sono, os sonhos e viajei no tempo…
Comecei a me lembrar dos carnavais da adolescência, curtidos muito perto dali, na minha querida cidade natal.
Me vi no Tênis Clube, primeira noite, sábado de carnaval, ano de 1967…..
Salão, lotado, todas as famílias tradicionais ali representadas, tios, amigos, pais dos amigos e muitas garotas, principalmente as garotas “de fora” que vinham passar o carnaval na cidade e convenhamos eram o alvo, principalmente para um adolescente de 15 anos, como eu.
Nessa época todas as famílias iam ao baile de carnaval e todas tinham suas mesas reservadas. Era padrão cada um levar o seu litro de Whisky, pagando a rolha para ter o gelo e depois pedir os pratos de salgadinhos para acompanhar.
Para nós adolescentes, era sagrado, no começo do baile, fazermos um tour pelas mesas dos tios, pais e pais de amigos, para “filar” um bom Whisky e comer alguma coisa, já que com a ansiedade que nos dominava, quase sempre saíamos de casa sem sequer lembrar de “forrar” o estômago, desobedecendo os avisos sábios de nossas queridas mães.
Quando entrei no salão, as marchinhas já rolavam soltas, tocadas pela nossa banda de craques que entre outros tinha o De Paula que não era o Benito, o cantor Roberto que não era o da Jovem Guarda, o Tostão que não era o jogador, o Arnaldo que não era o filho, mas o pai de um grande amigo e tantos outros que a memória me traz os rostos mas não me deixa lembrar dos seus nomes.
Eles faziam parte da nossa grande banda a mesma que nos deliciava, em vários bailes durante o ano e especialmente naqueles 4 dias, com suas músicas e marchinhas que mereciam ser realmente chamadas de músicas de carnaval:
-“Se você pensa que cachaça é água….”
- “Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é…..”.
- “Ô abre alas que eu quero passar…..”
-“Mamãe eu quero, mamãe eu quero…… mamãe eu quero mamar! “ - “Ôôôô, Aurora…. Veja só que bom que era…. Ôôôô, Aurora!”
- “Ei, você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí!”
No finalzinho do baile eles emendavam as marchinhas mais lentas, e era quando, abraçados com as meninas, tínhamos a oportunidade de roubarmos aquele beijo, já que isso não era tão fácil e comum como hoje.
Naquele momento me ocorreu como seria, neste mundo chato de hoje em dia, estar num baile em que estivesse tocando essas marchinhas… Acho que logo apareceria algum chato, nos acusando de “bullying”, racismo ou homofobia!
Mas nessa nossa época as marchinhas eram todas cantadas com a mais pura inocência, sem qualquer conotação, nem intensão de ofender ninguém e assim eram respeitadas por todos. Nosso mundo de 1967 era muito mais cheio de inocência e carente de qualquer presunção.
Naquele dia em especial de 1967 eu estava no baile com a minha musa, “menina de fora”, filha de dentista, que tinha recém mudado pra São Paulo, morena linda, cabelos cacheados, olhos castanhos, cor de mel, cuja lembrança me vem sempre à memória, quando ouço, principalmente a parte mais sugestiva, o próprio roteiro até, da letra de “Máscara Negra”:
Foi bom te ver outra vez
Tá fazendo um ano
Foi no carnaval que passou
Eu sou aquele Pierrô
Que te abraçou e te beijou, meu amor
Na mesma máscara negra
Que esconde o teu rosto
Eu quero matar a saudade
Vou beijar-te agora
Não me leve a mal
Hoje é carnaval……
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Acordei com o sol batendo forte no meu rosto. Tentei abrir vagarosamente os olhos, fustigados pela intensa luz da manhã e me localizar.
O vento bateu no meu rosto, olhei para os lados e vi que estava sentado no que parecia ser uma estrutura de concreto e bem na minha frente conseguia ainda identificar uma enorme piscina e um trampolim!
O que estou fazendo aqui?
Olhei no relógio, eram quase 8 horas da manhã!
Percebi que estava vestido com uma roupa de prisioneiro, com listras horizontais, no peito havia estampado um número: 08-10-1969, e ao meu lado um gorro pequeno, também listado e na perna havia amarrada uma corrente, tendo na ponta uma bola grande e preta…. Será que eu estava preso? Acorrentado? O que teria acontecido?
Logo me veio uma forte dor de cabeça, tudo começou a girar, a piscina ficou de cabeça para baixo e o meu estômago se contraiu, foi o tempo de me virar rápido e Vupt ! colocar tudo pra fora, bem em cima do meu gorro!
Respirei fundo por várias vezes, a tontura passou e eu comecei aos poucos a me sentir melhor e a me recuperar. Comecei então a organizar os pensamentos e tentar lembrar o que tinha se passado….
Me lembrei do beijo gostoso na minha colombina….. e aos poucos me veio, ao mesmo tempo, diversas imagens: whisky, mesas, salão, trem, carros alegóricos, escola de samba, bloco dos prisioneiros…..e Zaz! Aquele monte de imagens tinha ficado agora bem claro na minha mente! Lembrei que estávamos em pleno carnaval! Putz que alívio!
No dia anterior sábado tínhamos experimentado a nossa fantasia do bloco de carnaval de rua: “Bloco dos Prisioneiros”, roupa listada, estampado no peito o dia e o mês de nascimento de cada um e mais o ano vigente, procurando representar o número de série, da nossa ”Penitenciária”.
Ufa! junto com essa sensação de alívio, comecei a rever os minutos anteriores, o susto ao me ver de prisioneiro, corrente, bola de ferro (que era de isopor) presa no pé, gorro listado, etc… Desatei a rir sozinho!
Que fogo eu tinha tomado! pensei….
Cadê a minha morena? a minha colombina dos olhos cor de mel?
Mas eu estava ali, sozinho, numa grande ressaca de carnaval, depois do baile de domingo…… sentado na arquibancada, olhando a piscina do Tênis Clube.
- Psiu! Oi garoto! O que você está fazendo aqui à esta hora? Não foi pra casa ainda?
Olhei e vi na boca da escada de acesso da arquibancada, nosso velho e querido “Seu Jorge”, zelador do Tênis Clube. - Vai pra casa, ele me disse!
-Oi Seu Jorge, vou sim, acho que bebi demais ontem e peguei no sono aqui….
Sai do clube e voltei andando, bem devagar, para casa, com uma certa dificuldade no equilíbrio, pela bebedeira, ao mesmo tempo em que fui lembrando dos dias anteriores e de como eram maravilhosos os nossos carnavais……..
Não tínhamos nenhum carnavalesco, pagos a peso de ouro, nem enredos com grandes histórias, contadas em prosa e verso, nem enormes carros alegóricos ou ricas fantasias de destaques. Nosso carnaval do interior, não tinha ninguém dizendo muito o que tínhamos que fazer. Cada um dava uma ideia, grupos e blocos iam se formando e as coisas iam saindo naturalmente, sem grandes investimentos, nem tampouco da máquina pública. Tudo puro improviso!
Era um carnaval de coisas simples, de fantasias modestas, obras de mães e vovós ou de alguma costureira dedicada que costuravam com prazer, para costurar e tecer os nossos sonhos de quatro dias, tudo alinhavado com muito amor e carinho.
Apesar de simples, nosso carnaval era rico de alegria, de diversidade, de respeito e sem brigas ou confusões.
Tínhamos os nossos “travestis” de 4 dias, grupo de caras mais velhos (héteros) vestidos de mulher, com roupas emprestadas das avós e maquiados pelas mães ou irmãs! Era tradição, sem frescuras, sem balançar de bandeiras de arco íris. Era puro divertimento!
Nossa pequena Escola de Samba então, com maioria de gente simples, das vilas, compensava o pouco investimento, as pobres fantasias, com talento, improviso e muito samba no pé!
Tínhamos também até um “Clovis Bornay” tupiniquim, fantasiado com um biquíni improvisado, verde limão, puída que só, entremeada com alguns pedaços de paetês e lantejoulas penduradas, que ele, sim Ele, repetia todo ano, complementada com um sapato de salto altíssimo. O biquíni do nosso “Clovis” era cavado, até ousado para a época, corpo coberto de purpurina e no pescoço alguns colares de velhas miçangas, mas sempre levando a sério o seu enredo de samba no pé, seu rebolado esquisito, mas no ritmo, talvez no mesmo ritmo que emprestava, com seu talento para a cozinha, para a única churrascaria da cidade.
Nossos Reis Momos, que na maioria das vezes, nem sempre eram os mais “gordos” da cidade, eram mais alegres e felizes. Reinavam acompanhados de seus ministros e princesas, formando a “entourage” dos amigos do peito, irmanados num único grupo para aqueles dias intensos de folia, visitando os poucos, mas animados clubes e associações da cidade.
Interessante que os nossos Reis Momos, que reinaram nesses anos sessenta, tinham origens bastante ecléticas, o que tornava ainda mais democrático aqueles nossos carnavais. Eles vinham das mais variadas origens socioeconômicas, tinha Momo filho de advogado, Momo filho de servente de escola, Momo filho de dono de máquina de arroz e também Momo filho de dono de funerária.
Mas o que todos tinham em comum era a característica marcante da grande simpatia e da enorme alegria. Eles eram a nossa gente boa, os nossos amigos, que sabiam como ninguém comandar aqueles dias maravilhosos do carnaval.
Que falar então do corso, em volta do jardim público, com direito a muitas bisnagas de água e de “sangue do diabo” (mistura química de cor vermelha que continha também amoníaco), que alegrava as crianças e até irritava alguns adultos mais sérios, complementado pelos grandes sacos de confete, os inúmeros rolos de serpentina e o delicioso cheiro de lança perfume no ar.
Os amigos se reuniam e montavam seus blocos. As vezes eram dois blocos, o primeiro para pular o carnaval de rua, fazer o corso, aquele em que nos divertíamos com os amigos, na rua, sempre acompanhados da escola de samba e dos carros alegóricos.
O segundo bloco era aquele bloco do clube, do baile, das noites de carnaval e envolvia mais amigos, casais de namorados, primas e primos de outras cidades e as possíveis namoradas de fora….
As fantasias, não tinham muita originalidade, mas o que importava era que todas tinham as suas costuras feitas com as linhas da amizade, usando panos da união, juntando ainda mais os eternos amigos de infância.
Eram blocos, de todas as idades e que homenageavam palhaços, mendigos, presidiários, havaianas, piratas, marinheiros, ciganos, colombinas & pierrôs e tantos outros tipos, que durante esses vários anos da adolescência, pudemos participar, viver e compartilhar.
Todo bloco que se prezasse tinha que ter o seu “esquenta”. Um dos melhores era o esquenta do carnaval oficial de rua. Era patrocinado pela própria Comissão de Carnaval e começava sempre num galpão de um antigo empresário que beneficiava arroz, tocado a muito whisky, e quando, em edições premiadas, incluía até um lança perfume, descolado dos mais velhos, para inebriar ainda mais todos nós, os foliões.
Depois do esquenta, todos os blocos e a comitiva do Rei Momo, eram convidados a entrar num ônibus fretado, alguns até que colocados lá meio que carregados, todos rumo à estação de trem do distrito vizinho, para embarcarmos no comboio que tomava o sentido da estação da Sorocabana de nossa cidade. No trajeto cantávamos aquelas músicas impublicáveis, começando com aquela: “O Brasil vai lançar um foguete…..Cuba também vai lançar……” e terminando com “Se você pensa que Band-Aid é Modess, Band-Aid não é Modess não…….”
O trem da alegria chegava então na estação, com todo mundo, seu Rei Momo e comitiva, seus blocos, alguns pendurados nas janelas dos vagões puxados pela velha Maria Fumaça, todos calibrados numa proporção aceitável de álcool e alegria!
Alguns iam nos carros alegóricos, outros se juntavam com a velha escola de samba, ou com os vários blocos, que ali esperavam. Aí, com muita samba e boa companhia, descíamos em direção ao centro da cidade, para darmos a volta no jardim, e dar assim início ao corso. Logo, em sequência, se juntavam ao corso, os carros das várias famílias da cidade e a festa continuava por várias e várias horas.
Este era o nosso dia, de sambar muito até cair no chão e muitas vezes muito mais dia de cair no chão, sem sambar!
Nesse domingo de carnaval em que havia o desfile de rua, tudo começava, digamos relativamente organizado, até que os blocos iam se misturando, alguns componentes até se perdiam e no final virava tudo uma grande festa de confraternização geral!
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Sinto um empurrão, minha esposa me sacode:
- Já é tarde, levanta! toma aqui o seu café…
Acordo, ainda estou na rede, olho a piscina, a soneca foi boa, percebo que estou na minha casa…
- Estava sonhando, respondo…
Imediatamente me recordo do sonho, com detalhes…Que maravilha!
O Spotify parece que lê minha mente e sintonizado, começa a tocar o grande sucesso de Max Nunes, que normalmente encerrava os nossos bailes, na quarta-feira de cinzas:
Bandeira Branca, Amor
Não Posso Mais
Pela Saudade
Que Me Invade
Eu Peço Paz…..
José Luiz Ricchetti