Presidente rondou a ideia do golpe;
Congresso tratado como obstáculo;
Projeto liberal perdeu-se na confusão;
Legitimidade não é apenas o voto…
Jair Bolsonaro teve a oportunidade de governar o povo brasileiro. Ele inclui os mais de 40 milhões de pessoas que não votaram nele nem no 2º turno. E a grande fatia dos eleitores que somente se juntaram a ele, no 2º turno, por ojeriza ao oponente.
Bolsonaro cometeu o erro fatal dos políticos ofuscados pelo poder. Achou que poderia impor suas ideias à coletividade. Sem força política nem legitimidade para tal, fez pior: rondou a ideia do golpe. Golpe, lembre-se, é quando uma minoria tenta impor suas ideias e posições à maioria pela força, quebrando as regras democráticas e institucionais.
Ele o fez do seu jeito. Flertou com suas ideias a favor da ditadura, negando impulsioná-la enquanto açulava sua matilha virtual nessa direção. Disse que não organizava nem apoiava o protesto contra o Congresso e o STF em 15 de março, mas caiu nos braços dos seus militantes, com suspeita de contaminação de vírus corona e tudo, no dia marcado.
O presidente deixou, na prática, de governar para a coletividade para empenhar-se na defesa de suas ideias e interesses pessoais. Entre esses interesses está o ocultamento das atividades suspeitas da família, organizadas ao redor do ex-colaborador Fabrício Queiroz, que empregava parentes de pelo menos um miliciano que Bolsonaro e seus filhos sustentaram ser um herói.
A crítica a Bolsonaro não dá espaço para a esquerda ou a ideia de devolver o governo ao PT. Bolsonaro não cumpriu seu próprio projeto, que, por sinal, não é dele, é da sociedade brasileira. Esse projeto continua a ser uma correção de rota em relação ao passado, ainda sem resultados, porque tem sido insuficiente, incompleto ou se perde na confusão gestada pelo bolsonarismo.
A plataforma do governo está fundada no fim da dependência do Estado na economia, no saneamento das finanças para a retomada de investimentos em saúde e educação e a criação de um ambiente de estabilidade para o investimento, além de um combate ao crime e acorrupção. Executá-la bem não tem nada a ver com o PT, os índios, os gays, as mulheres, os políticos, os chineses nem outros inimigos que Bolsonaro se empenha em multiplicar.
Nada desse projeto coletivo está acontecendo, independentemente da epidemia do vírus corona. Em grande parte, porque Bolsonaro se tornou o fator de instabilidade do próprio governo.
Por motivos ideológicos, atacou até mesmo seus próprios colaboradores, instaurando o terror na administração federal. Espalhou deliberadamente a cultura do ódio. No mundo de Bolsonaro, todos são “comunistas”, a começar pelo seu vice, o general Mourão.
Para ele, o problema são as instituições democráticas, a começar da imprensa, que só vale quando o elogia. E imprensa não é feita para elogiar, tanto quanto denegrir ninguém. A imprensa serve para relatar os fatos que, segundo ele, quando o contrariam, são sempre mentirosos.
Para Bolsonaro, o Congresso nada mais é que um obstáculo. Os partidos não servem. Resultado, ficou sem nenhum. O Supremo Tribunal Federal também não presta. Não há ninguém sem pecados, é verdade, mas ele arrumou encrenca até mesmo com os militares, que publicamente elogia e com os quais diz ainda se identificar, mas que no seu curto governo foram enxovalhados até o ponto da humilhação pela sua tropa ideológica, quando não por ele mesmo.
Os militares tiveram de engolir o orgulho pessoal e corporativo, em nome da ordem e do princípio da subordinação. Bolsonaro encheu seu gabinete com eles, porque o obedecem, como obrigação. Porém, esse é somente o reflexo do fato de que fica cada vez mais sozinho.
O presidente é também contra a realidade, quando ela não se apresenta como ele quer. A negação da gravidade da epidemia do vírus corona beira a sandice. A realidade não está boa? Dane-se a realidade.
Em suma, Bolsonaro é o exemplo final, cabal e irrecorrível de que o Brasil precisa mudar. Primeiro, com uma reforma eleitoral, que encerre o mecanismo plebiscitário do segundo turno, pelo qual um partido minoritário radical acaba levando a eleição, com a agenda oculta de, ao tomar o poder, destruir a democracia.
Segundo, é preciso instaurar um gatilho institucional que encerre esse ciclo de presidentes que não dão certo e são removidos no meio do caminho. Desde a Constituição de 1988, dos quatro presidentes eleitos, dois saíram antes do fim de mandato; Collor e Dilma. Os outros são Fernando Henrique e Lula.
O impeachment não pode ser um instrumento administrativo de remoção de incompetentes. É preciso um mecanismo que dê mais poder de ação ao presidente, mas que também controle suas ações dentro de uma plataforma política endossada pela maioria.
Um presidente eleito tem de entender que a eleição legitima o nome daquele que vai ocupar o cargo, mas não legitima sua administração. Ela é legitimada quotidianamente pelo cumprimento das promessas de campanha, a execução de um plano de governo que atenda à maioria, para não falar de um comportamento adequado ao cargo e um desempenho condigno no papel de liderança da nação.
Quando não segue essa cartilha, um presidente legitimamente eleito perde a legitimidade ao governar e também o apoio político. Nas grandes crises, rapidamente. Que Bolsonaro seja o último dessa infeliz linhagem.